Vinte e três pessoas intersexo e trans passarão pelo processo de redesignação sexual durante a I Jornada Multidisciplinar de Cirurgias de Modificação Corporal em Pessoas Trans e Intersexo organizada pelo Ministério da Saúde e pelo Hospital Universitário Getúlio Vargas, vinculado à Empresa Brasileira de Serviços Hospitalares (Ebseh ) e da Universidade Federal do Amazonas (HUGV-Ufam). Esta será a primeira vez que os procedimentos serão realizados pelo Sistema Único de Saúde (SUS) na Região Norte.
As cirurgias destinadas a indígenas intersexuais e mulheres trans serão realizadas em três salas simultâneas por uma equipe de oito cirurgiões urológicos, selecionados pela Sociedade Brasileira de Urologia (SBU). Entre as pessoas que serão submetidas aos procedimentos, três são indígenas intersexuais.
O evento clínico, que acontecerá em Manaus, no Amazonas, entre a próxima terça (27) e sábado (31), reunirá 150 profissionais e acadêmicos e também treinará cerca de 150 profissionais do direito, serviço social e saúde, como médicos, psicólogos , enfermeiros e fisioterapeutas, o que é considerado pelos organizadores um marco para a região.
“Acreditamos que o evento promoverá o desenvolvimento regional, já que o HUGV possui um projeto para viabilizar as cirurgias que serão realizadas durante a Jornada, podendo dar continuidade à crescente demanda cirúrgica em nosso Estado, tornando-se o primeiro hospital da Amazônia Ocidental a realizar cirurgias no processo transexualizador”, afirmou a presidente da comissão organizadora da Jornada, Conceição Maria Guedes Crozara, na nota da SBU.
Pacientes que desejam realizar cirurgias de conformidade e redesignação sexual, também chamadas de cirurgias do processo de transexualização, aguardam há muito tempo essa oportunidade no SUS.
“Hoje o acesso a esse tipo de cirurgia que envolve reconstrução genital para pessoas intersexuais e trans ainda é muito restrito e as filas são enormes. Especialmente para pessoas intersexuais, há muito poucas pessoas fazendo isso porque a visibilidade é muito menor do que para pessoas trans. Essas pessoas ficam no limbo, invisíveis e sem condições de receber atendimento”, disse o urologista Ubirajara Barroso Jr, organizador da equipe cirúrgica de urologia da Jornada, referência em cirurgias de redesignação sexual e intersexuais e chefe do Departamento de Cirurgia Afirmativa de Gênero da SBU, em entrevista ao Agência Brasil.
“Não vejo, em geral, grandes ações para reunir especialistas e levá-los até o local para realizar uma grande demanda de cirurgias em pessoas que necessitam, então este é um evento onde estamos prestando assistência de qualidade em um local onde as pessoas estão precisando”, disse Barroso Jr.
A equipe do urologista prestará atendimento aos três indígenas intersexuais, que passarão por procedimentos para adaptação dos órgãos genitais ao sexo biológico. “Numa cultura completamente diferente eles tiveram problemas com isso, andam nus e ficam expostos aos órgãos genitais desde cedo”, comentou o médico sobre como é para um indígena ser intersexo, o que em alguns casos até acaba sendo expulso das tribos.
Procurar
A viagem também permitirá aos médicos coletar informações da população indígena intersexo para publicar um estudo científico pioneiro que envolverá também médicos residentes e estudantes de graduação. “Qual foi o reflexo de ter genitália atípica com características masculinas e femininas? Como é ter isso dentro de uma tribo indígena. Como foi a infância deles na tribo, o que sofreram ou não, como foi a experiência deles quando adultos e sendo operados por decisão própria?”, disse o urologista, indicando algumas perguntas que serão feitas no pesquisar.
Segundo o médico, até o momento não há informações sobre quantos indígenas intersexuais vivem no Brasil. “Vou tentar me aprofundar, até perguntando aos próprios pacientes porque, às vezes, isso é familiar. Os casos intersexuais têm maior chance de serem familiares. É possível que existam outras pessoas que não conhecemos. Não sei quantos são, nasceu mais um agora que ainda é criança e está sob investigação. Vou avaliar lá”, disse, acrescentando que é mais fácil fazer a cirurgia quando a pessoa ainda é criança, mas destacou que em situações em que há dúvida sobre a identidade de gênero é melhor esperar a pessoa decidir .
Como esses procedimentos ainda não são realizados na Região Norte, para o urologista é fundamental a capacitação e familiarização das equipes locais com as técnicas estabelecidas e já definidas na tabela do SUS. “Vamos capacitar um grupo de cirurgiões lá para deixar um processo permanente em que as pessoas possam então fazer cirurgias. Estamos a descentralizar e a replicar conhecimento, naquele que é um procedimento que não é simples de realizar”, acrescentou.
Durante os quatro dias da Jornada, os participantes poderão assistir a palestras e realizar minicursos que visam ampliar o conhecimento e a visibilidade sobre a transexualidade e a intersexualidade no âmbito do atendimento dos serviços públicos de saúde.
O presidente da SBU, Luiz Otávio Torres, argumentou que o país precisa estar preparado para atender essa parcela da população. Nesse caminho, a SBU intensificou seus congressos, treinamento cirúrgico para pessoas trans e intersexuais e educação continuada online com estudos de caso para associados.
“É urgente que nosso país esteja preparado e possa atender pessoas intersexuais e trans com qualidade e cuidado. E é nossa missão como sociedade de especialidade promover e participar ativamente dessas ações que promovem o conhecimento e a inclusão social”, afirmou Torres, em comunicado da entidade.
“Não há médicos em nenhuma região habilitados para fazer isso, que é uma cirurgia muito específica. São poucos os cirurgiões no Brasil que realizam esse tipo de procedimento”, acrescentou Barroso Jr.
intersexo
Anteriormente, uma pessoa intersexo era conhecida como hermafrodita, mas o termo agora está fora de uso por ser pejorativo. Segundo a SBU, é uma condição biológica que afeta entre 0,5 e 1,7% da população mundial, “caracterizada por uma inconformidade entre o sexo cromossômico (XX ou XY) e o sexo fenotípico (vagina e pênis). Em outras palavras, uma pessoa pode nascer XY e ter um órgão sexual feminino.”
Na visão de Barroso Jr, o caso da lutadora argelina Imane Khelif nas Olimpíadas de Paris que sofreu preconceito em suas lutas é um exemplo de como a sociedade ainda desconhece o intersexo.
Redesignação sexual
Segundo a SBU, a redesignação sexual, também chamada de cirurgia genital de afirmação de gênero, é um procedimento que pode ser hormonal e/ou cirúrgico para adaptar os órgãos genitais do sexo biológico do indivíduo ao gênero pelo qual o paciente se identifica.
O cirurgião especialista comparou a satisfação de uma pessoa trans após o procedimento à de um paciente transplantado renal. “Quando o paciente começa a urinar, você vê alegria na família, algo espetacular. Quando é feita uma cirurgia de modificação genital de afirmação de gênero, ela é transformadora na vida da pessoa que tem esse desconforto, essa agonia psicológica com o órgão genital. A demanda existe e cada vez mais centros precisam ter condições de fazer isso”, disse Barroso Jr.
A maior procura por cirurgia é de mulheres trans, o que para ele também é uma questão de desinformação. O médico exemplificou a portaria do SUS que trata do assunto. “Mulheres trans podem fazer a cirurgia, mas no caso dos homens é experimental. Fazemos isso aqui, na nossa Universidade, porque temos projetos de pesquisa e não recebemos nada por isso. Isso já mostra um distanciamento entre o homem e a cirurgia”, explicou Barroso Jr., que foi o cirurgião responsável pela primeira cirurgia de redesignação sexual realizada na Bahia pelo SUS.
Ubirajara Barroso Jr.
Chefe da Divisão de Cirurgia Urológica Reconstrutiva e Urologia Pediátrica do Hospital da Universidade Federal da Bahia, Ubirajara Barroso Jr., realizou a primeira cirurgia afirmativa de gênero do estado por meio do SUS, em agosto de 2023. Publicou mais de 200 artigos, mais de 20 capítulos de livros, dois livros editados e um livro coeditado, abrangendo técnicas cirúrgicas inovadoras e novos tratamentos para reconstrução genital e incontinência urinária. É palestrante nacional e internacional.
Além da participação presencial, as equipes de saúde do interior, interessadas no encontro, poderão acompanhar as atividades em transmissões ao vivo no canal do HUGV no YouTube.
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