O último relatório O Estado da Segurança Alimentar e Nutricional no Mundoelaborado por cinco agências especializadas das Nações Unidas, apontou que, em 2023, 2,33 bilhões de pessoas enfrentavam insegurança alimentar moderada ou grave e que 733 milhões passaram fome no mundo.
O estudo assinala que a insegurança alimentar e a subnutrição estão a piorar devido a uma combinação de factores, incluindo a inflação dos preços dos alimentos, crises económicas, desigualdade, dietas saudáveis inacessíveis e alterações climáticas.
Somente no Brasil, segundo o Atlas Global de Política de Doação de Alimentos61,3 milhões de pessoas sofrem de insegurança alimentar, o que representa quase um quarto da população.
“O que vimos é que entre 2019 e 2020 houve um enorme aumento da fome e da insegurança alimentar em todo o mundo. Pensávamos que com o fim da pandemia de Covid-19 esses números diminuiriam. Mas o que realmente aconteceu é que nos últimos três anos permaneceram persistentemente elevados. Tivemos a guerra na Ucrânia, as alterações climáticas e a superinflação. E tudo isto significa que há milhões e milhões de pessoas que ainda lutam para ter acesso a alimentos suficientes”, disse Lisa Moon, CEO [diretora-executiva] de A Rede Global de FoodBanking.
Lisa deu uma entrevista para Agência Brasil durante o seminário internacional Sistemas Alimentares: Oportunidades de Combate à Fome e ao Desperdício no Brasil, realizado hoje (6) pelo Sesc e pela A Rede Global de FoodBanking (GFN), uma entidade internacional que trabalha com organizações locais para apoiar bancos alimentares em mais de 50 países. O evento foi realizado no Sesc Belenzinho, em São Paulo.
“Este seminário marca a abertura das comemorações dos 30 anos do programa Sesc Mesa Brasil e também traz à tona toda essa discussão sobre mudanças climáticas, desperdício, vulnerabilidade e fome. É importante que estejamos sempre debatendo esse cenário e buscando novas formas de mitigar os graves efeitos que encontramos, com tantas pessoas em situação de insegurança alimentar”, disse Cláudia Roseno, gerente assistencial do Departamento Nacional do Sesc.
Um dos temas das discussões promovidas pelo seminário abrange os efeitos da crise climática na fome e na insegurança alimentar no mundo.
“As mudanças climáticas impactam o circuito de produção e distribuição [dos alimentos]. Um exemplo muito emblemático e recente é a tragédia no Rio Grande do Sul”, disse Cláudia. No Sul, lembrou, as cheias afectaram toda a produção agrícola familiar e de subsistência e também a produção de arroz, o que afectou o abastecimento de todo o país.
Questionada sobre estes impactos, Lisa destacou que as comunidades que mais sofreram com as alterações climáticas são também as mais afetadas pela fome. “Vemos taxas mais elevadas de fome crónica e taxas mais elevadas de insegurança alimentar em comunidades que sofrem os impactos das alterações climáticas. Ao mesmo tempo, o nosso sistema alimentar está a produzir alimentos mais do que suficientes para que todos tenham o suficiente, mas estamos a deitar fora cerca de um terço de todos os alimentos produzidos globalmente, aumentando as emissões de gases com efeito de estufa”, observou. ela. “Com o desperdício de alimentos, estamos a agravar o problema das alterações climáticas”, acrescentou.
No caso específico do Brasil, destacou Carlos Portugal Gouvêa, professor de Direito da Universidade de São Paulo (USP) e professor visitante da Faculdade de Direito de Harvard, esta questão do desperdício alimentar também está relacionada com a pecuária. “Se olharmos, o Brasil está entre os maiores produtores de carne do mundo. Temos as maiores empresas produtoras de proteínas do mundo, mas também temos um nível muito elevado de resíduos animais e de carne no mundo. E qual é o problema da sustentabilidade? Se olharmos quem é o maior poluidor brasileiro, quem mais contribui negativamente para as emissões de gases, que impactam no aquecimento global, é a indústria da carne. Podemos perceber que existe uma ligação direta entre resíduos e indústria”, afirmou, durante o seminário. “O desperdício está muitas vezes ligado a um sistema económico em que é preciso libertar a produção, num determinado nível de produção”, destacou.
Soluções
As respostas para enfrentar a fome e os impactos das alterações climáticas na insegurança alimentar não são fáceis nem imediatas. Mas eles são urgentes.
Exigem também esforço coletivo e “muita discussão”, destacou Cláudia Roseno. “É preciso trazer à mesa pesquisadores, governos, sociedade civil e iniciativas como o Sesc Mesa Brasil para discutir esse problema. Precisamos encontrar outras formas de reduzir os efeitos das mudanças climáticas, do desperdício e também da vulnerabilidade e da fome no Brasil”, afirmou.
Para Lisa Moon, reduzir a fome passa, por exemplo, por apoiar bancos alimentares. “Para as pessoas que vivem na pobreza, se não tiverem dinheiro suficiente para sobreviver, a comida é muitas vezes a última coisa que comprarão. Eles terão que comprar moradia, remédios e outras coisas. E isso significa que a fome é muito, muito prevalente, mesmo entre as pessoas que têm emprego. E o papel dos bancos alimentares é ajudar a prestar esse apoio às pessoas necessitadas. E não só fornecem alimentos para satisfazer as necessidades básicas, mas também fornecem nutrição vital”, afirmou.
Lisa destaca outras ações importantes para reduzir a fome e a insegurança alimentar no mundo, principalmente relacionadas com doações a bancos alimentares. A primeira delas, disse ela, diz respeito à proteção de responsabilidades. “Se as empresas e os produtores de alimentos doam de boa fé, devem ter a certeza de que não terão qualquer tipo de problemas jurídicos”, disse.
Outros pontos que Lisa destacou como importantes são os incentivos fiscais, a rotulagem e os investimentos no terceiro setor.
“Em muitos lugares é mais caro doar alimentos do que jogá-los fora. Com incentivos fiscais podemos ajudar a incentivar as empresas a, pelo menos, aliviar alguns dos seus custos quando fazem esta doação. Outra coisa é a rotulagem de vencimento [dos alimentos]. A rotulagem do prazo de validade é muito confusa e causa confusão sobre se se trata de rótulos de qualidade ou de segurança alimentar. Adotar uma rotulagem verdadeiramente focada na segurança alimentar pode ser muito útil para as doações. A última coisa é pensar realmente em como investir no terceiro sector que irá recuperar este excedente alimentar. Descobrimos que, com pequenos investimentos em subsídios a infraestruturas, podemos realmente aumentar a capacidade dos bancos alimentares para receberem mais produtos excedentários e redistribuí-los às pessoas necessitadas”, destacou Lisa.
Para o professor Carlos Portugal Gouvêa, da USP e Faculdade de Direito de Harvard, a questão da fome precisa ser enfrentada não apenas com políticas públicas eficientes, mas também com assistência social. Ele lembra que não adianta ter uma boa política pública se ela não chega a quem mais precisa. “Você precisa ter pessoas que vão onde está a pobreza. Precisamos de pessoas que descubram especificamente o problema dessas famílias e depois usem o aparelho do Estado para dar uma resposta específica para essa família”, observou.
“Se o Brasil é um país desigual e você faz uma política pública que, no final das contas, atende uma classe média, você está, eventualmente, perpetuando essa desigualdade”, disse Carlos. “Os desafios, no caso da sociedade brasileira, são realmente imensos. Mas como digo aos meus alunos, se conseguirmos resolver esses problemas no Brasil, criaremos exemplos para o mundo”, argumentou.
Tabela Brasil
Para comemorar os 30 anos do programa Sesc Mesa Brasil, maior rede privada de bancos de alimentos da América Latina, o Sesc, em São Paulo, está promovendo uma programação especial, que recebeu o nome de Festival Sesc Mesa Brasil.
Nos dias 10 e 11 de agosto, as unidades da capital, litoral e interior paulista terão mais de 80 apresentações artísticas gratuitas, além de abrirem seus espaços para receber doações de alimentos não perecíveis. Os itens arrecadados serão doados a instituições sociais. Mais informações sobre o programa podem ser encontradas em site.
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