Mais de 1.300 pessoas morreram este mês enquanto realizavam a peregrinação islâmica hajj na Arábia Saudita —a grande maioria das quais, segundo o governo saudita, não tinha autorização.
Muitos caminharam quilômetros sob um calor escaldante depois de pagar milhares de dólares a operadores turísticos ilegais.
Enquanto os peregrinos com autorização eram transportados pela cidade sagrada de Meca em autocarros com ar condicionado e descansavam em tendas climatizadas, aqueles que não estavam registados ficavam frequentemente expostos aos elementos.
Nos últimos dias, quando as temperaturas ultrapassaram os 48,8ºC, alguns peregrinos afirmaram ter visto pessoas desmaiando e corpos na rua.
No domingo, numa entrevista à televisão estatal, o ministro da Saúde saudita, Fahd bin Abdurrahman al-Jalajel, afirmou que 83% das 1.301 mortes registadas envolveram peregrinos não autorizados.
— O aumento das temperaturas durante a época do hajj representou um grande desafio este ano — explicou, acrescentando: — Infelizmente, e isto é doloroso para todos nós, aqueles que não foram autorizados para o hajj viajaram longas distâncias sob o sol.
As declarações de Al-Jalajel ocorreram após dias de silêncio do governo saudita sobre as mortes durante o hajj, um ritual árduo e profundamente espiritual que os muçulmanos são encorajados a realizar pelo menos uma vez na vida, se puderem.
Com cerca de dois milhões de participantes por ano, não é incomum que os peregrinos morram devido ao stress térmico, doenças ou doenças crónicas.
Não se sabe ao certo se o número de mortes este ano foi superior ao habitual, porque a Arábia Saudita não divulga regularmente estas estatísticas.
Em 1985, mais de 1.700 pessoas morreram nos locais sagrados, a maioria delas devido ao estresse térmico, segundo estudo realizado na época.
Mas como muitos dos que morreram não foram autorizados, o número de mortos deste ano expôs um submundo de operadores turísticos e contrabandistas ilícitos que lucram com os muçulmanos desesperados para fazer a viagem.
As mortes também revelaram o que parece ser uma falha nos procedimentos de imigração e segurança sauditas concebidos para impedir que peregrinos não registados cheguem a locais sagrados, incluindo um cordão de segurança em torno de Meca que fecha semanas antes do hajj.
Apesar dos esforços, estima-se que cerca de 400 mil pessoas sem documentos tentaram a peregrinação este ano, disse à AFP um alto funcionário saudita sob condição de anonimato.
As autoridades sauditas não responderam aos pedidos de comentários.
Contrabandistas exploram brechas
Em entrevistas ao New York Times, no entanto, operadores turísticos do hajj, peregrinos e familiares dos mortos descreveram lacunas que são facilmente exploradas e que permitem às pessoas viajar para o reino com um visto de turista ou visitante antes do hajj.
Assim que chegam, encontram uma rede de corretores e contrabandistas ilegais que oferecem os seus serviços, recebem pagamento e muitas vezes os deixam à própria sorte, disseram.
O número de peregrinos não registados parece ter aumentado este ano pelo agravamento da crise económica em países como o Egipto e a Jordânia.
Um pacote oficial de hajj pode custar mais de US$ 5 mil ou US$ 10 mil (cerca de R$ 27,1 mil e R$ 54,3 mil na cotação atual), dependendo do país de origem do peregrino — muito mais das condições de muitos que desejam fazer a viagem.
Marwa, um egípcio de 32 anos cujos pais realizaram o hajj sem permissão oficial este ano, disse que pagaram cerca de 2 mil dólares pela viagem, facilitada por um agente no Egito e um corretor na Arábia Saudita.
Eles sentiram que tinham que ir rapidamente (para Meca) porque à medida que a moeda egípcia perde valor, as suas poupanças diminuem todos os anos, explicou a filha. Marwa pediu para ser identificada apenas pelo primeiro nome para evitar repercussões legais.
Vários países que registaram um grande número de peregrinos falecidos agiram rapidamente para resolver o problema. Na sexta-feira, o presidente da Tunísia, que contabilizou mais de 50 peregrinos entre os mortos, demitiu o ministro dos Assuntos Religiosos do país.
Na Jordânia, que registou a morte de pelo menos 99 peregrinos, o Ministério Público abriu uma investigação sobre rotas ilegais de hajj.
E no Egipto, as autoridades disseram que iriam revogar as licenças de 16 empresas que emitiram vistos a peregrinos sem prestar serviços adequados.
— Há muita ganância em torno deste negócio — explicou Iman Ahmed, coproprietário da El-Iman Tours no Cairo.
Ahmed disse que se recusou a enviar peregrinos não registrados em pacotes de hajj, mas que outros operadores turísticos egípcios e corretores sauditas ganharam muito dinheiro com isso.
‘Eles morreram fazendo o que queriam’
Entre os mortos também estavam pelo menos dois americanos. Isatu Wurie, 65, e Alieu Wurie, 71, moradores de Maryland, economizaram dinheiro durante anos para fazer a peregrinação, pagando US$ 23 mil (quase R$ 125 mil) a uma operadora de turismo local, disse a filha do pai. casal, Saida.
Mas depois de chegarem a Meca, o operador disse-lhes para ficarem no hotel até que as licenças fossem emitidas, e o transporte que lhes tinha sido prometido nem sempre estava disponível, disseram à filha.
Os pais ficaram frustrados porque acreditavam que estavam seguindo “as regras”, explicou Saida.
Mesmo assim, eles conseguiram realizar alguns dos rituais iniciais do hajj e ficaram “muito entusiasmados ao ver a Kaaba”, a estrutura cúbica que os peregrinos circundam, disse a filha.
Mas a última mensagem que recebeu da mãe dizia que o ônibus que os levaria a um dos locais não havia chegado e que, em vez disso, eles haviam caminhado por duas horas.
Apesar da frustração com a operadora turística, bem como da dificuldade em localizar seus corpos – enterrados em Meca – Wurie acredita que seus pais estavam cheios de alegria em seus últimos dias.
— Eles morreram fazendo exatamente o que queriam — disse Saida, acrescentando: — Eles sempre quiseram fazer o hajj.
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