O Exército israelita e o grupo xiita libanês Hezbollah trocam tiros na região fronteiriça desde Outubro passado, quando começou a guerra na Faixa de Gaza, com forças do chamado “Eixo da Resistência” do Líbano a actuar em sinal de apoio à grupo terrorista Hamas. Apesar disso, quando milhares de pagers e walkie-talkies da organização político-militar começaram a ser detonados quase simultaneamente no país na semana passada, todos foram pegos de surpresa. Segundo a jornalista e pesquisadora brasileira Leila Salim, que mora em Beirute há dois anos, a sensação era de que “qualquer pessoa ao seu redor pode explodir a qualquer momento”.
— Eu estava indo para o aeroporto de Beirute para resolver um problema com meu visto quando as explosões começaram. Em questão de segundos as ruas ficaram caóticas, com diversas ambulâncias passando e pessoas nervosas. Meu marido estava comigo no carro e decidimos desistir e voltar para casa, mas logo o trânsito parou — disse Salim ao GLOBO. — Ninguém esperava, parecia um filme de ficção científica. Foi difícil de acreditar, foi assustador. Desde então, vivemos num estado de tensão permanente.
Nos dias que se seguiram às explosões de equipamentos no Líbano, tanto o Estado Judeu como o Hezbollah começaram a anunciar uma “nova fase” do conflito – e o número de mortos aumentou rapidamente. Na quinta-feira, o governo libanês anunciou que 1.572 pessoas foram mortas em quase 12 meses de ataques, com cerca de 700 em apenas duas semanas. O número inclui pelo menos dois adolescentes brasileiros que morreram nos recentes atentados em Israel: o jovem Ali Kamal Abdallah, de 15 anos, e Mirna Haess Nasar, de 16. O pai de Abdallah morreu no mesmo ataque, do qual sobreviveu apenas o filho mais novo. idoso, Mohamed Abdallah, 16 anos, que chegou ao Brasil nesta sexta-feira.
– [Eu e meu irmão fomos] ajudar meu pai a trabalhar. Ouvimos o primeiro bombardeio e depois o segundo estava à nossa frente. Pedimos ao meu pai para fugir, [mas] Caiu tudo, não vi mais nada, não conseguia mais respirar. Tirei as pedras de mim e fui ver meu pai, [que] ele estava no chão, morto. Não consegui encontrar meu irmão. Eu estava gritando o nome dele e as pessoas ao meu lado estavam mortas. Não pensei que ele estivesse ali, nem ouvi a voz dele — disse o brasileiro à TV Globo.
Estima-se que 20 mil brasileiros vivam atualmente no Líbano, segundo o Itamaraty. Os dados sobre estas pessoas começaram a ser recolhidos na terça-feira pelo governo, que estuda organizar uma possível repatriação. Salim destacou que grande parte da comunidade brasileira no país vive no sul e no Vale do Bekaa, duas das regiões que têm sido alvos mais intensos de bombardeios. Ela explicou que muitos dos que vivem nestas áreas já tiveram de sair e procurar abrigo noutro local, pelo que lhes deveria ser dada prioridade nos esforços de repatriamento. Nenhum plano concreto, porém, foi anunciado até a última atualização deste texto.
— Também estou pensando em voltar ao Brasil. Nos últimos dias que passei avaliando, não tinha decidido o que fazer. A decisão de sair é muito difícil porque meu marido trabalha aqui e a mãe dele precisa de cuidados, então ele não pode ir comigo. Além disso, sou jornalista e tenho tentado fazer esse esforço de cobertura aqui para de alguma forma falar da barbárie, contar um pouco do que tenho visto dessa terrível violência. Mas eu não sei. Talvez não haja mais lugar seguro e eu precise sair do Líbano”, disse Salim.
Ataques constantes
Na sexta-feira, depois do primeiro-ministro de Israel, Benjamin Netanyahu, ter declarado num discurso na Assembleia Geral da ONU que o Estado Judeu tem o direito de acabar com a ameaça do Hezbollah, as forças israelitas bombardearam a sede da organização libanesa. O ataque teve como alvo o principal líder do grupo, Hassan Nasrallah, mas fontes ligadas ao Hezbollah indicaram que ele continua vivo. No total, a ofensiva deixou dois mortos e 76 feridos, além de quatro edifícios residenciais destruídos e outros dois danificados.
— Foi a primeira vez que ouvi um bombardeio dentro de casa. Tudo tremia, porta, janela, era um barulho enorme – relatou. — O que eu tinha ouvido aqui em casa até agora foram quebras de barreira de som, que é quando jatos israelenses ultrapassam o espaço aéreo e fazem um som de explosão, mas não é realmente uma bomba. Eu não tinha ouvido as bombas daqui até agora.
Parentes do nutricionista brasileiro Sultan Beydoun, que moravam no sul do Líbano, decidiram deixar a região cerca de uma semana antes da recente escalada de ataques. Num outro atentado bombista também na sexta-feira, ele soube que a casa e o negócio dos seus tios foram destruídos – o que, para Beydoun, é uma prova de que os ataques de Israel são “deliberados” contra a população libanesa. Até então, o Exército israelita afirmava realizar as suas ofensivas aéreas contra alvos “precisos” da “organização terrorista” no país. Também diz para alertar os civis para não ficarem perto dos redutos do grupo xiita.
— Não há ninguém que esteja bem psicologicamente. A casa da minha tia não existe mais e o café do meu tio, que ficava em frente, também foi demolido. Uma das desculpas que eles (as forças israelitas) usam é que os grupos usam a população como escudo humano. Mas minha tia não tem ligação alguma com o Hezbollah e mesmo assim a casa dela foi bombardeada — disse ele ao GLOBO. — A intenção de Israel não é apenas derrotar estes grupos — continuou Beydoun.
A visão é a mesma do jornalista brasileiro. Segundo ela, é “evidente” para quem vive hoje no Líbano que os ataques não são apenas contra a organização. Como argumento, ela mencionou que, das 500 pessoas mortas nos bombardeios israelenses de segunda-feira, 50 eram crianças e adolescentes. Além disso, continuou ela, as explosões dos pagers e walkie-talkies do grupo ocorreram em áreas civis — algo que, para ela, só ocorre na medida em que o Exército israelita assume a possibilidade de pessoas inocentes serem mortas. Salim também disse que embora Israel diga aos residentes para não permanecerem nos redutos do Hezbollah, as pessoas não sabem exatamente onde estão.
— Obviamente o Hezbollah não diz onde as armas estão armazenadas, por isso as pessoas não sabem. Além disso, são avisos que chegam minutos antes dos ataques acontecerem, para que as pessoas não tenham para onde ir. Na verdade, parecem muito mais crueldade”, disse ele. — Estamos a assistir a uma repetição do que já está a acontecer em Gaza. Israel continua a violar o direito internacional. A sensação que temos aqui, sendo vítimas, é que tudo isto está a acontecer aos olhos da comunidade internacional. E que, não importa quantos apelos sejam feitos, há carta branca para Israel continuar a colocar em risco não apenas a nós aqui, mas também a própria democracia e os direitos humanos.
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