Na edição de 22 de julho de 1969, o Pravda, principal jornal da União Soviética (URSS), publicou em sua capa (sem muito alarde) um comentário do condecorado cientista Alexander Vinogradov sobre a chegada da Apollo 11 à Lua, que aconteceu dois dias antes.
Embora oficialmente o regime tenha afirmado que o pouso no satélite natural não estava em seus planos — algo negado décadas depois —, ver os três astronautas em solo lunar foi um revés esmagador para um programa espacial que, até aquele momento, era marcado pelo pioneirismo.
“Aproveito esta oportunidade para felicitar os astronautas pelo seu notável sucesso e desejar-lhes um regresso seguro à Terra.”
Como praticamente todos os programas espaciais surgidos no século passado, o soviético tinha uma matriz militar, em grande parte focada no desenvolvimento de sistemas de propulsão capazes de transportar não pessoas ou satélites, mas ogivas nucleares — naquela época, após a Segunda Guerra Mundial, o mundo vivia os primeiros anos da Guerra Fria, com a ameaça constante e crescente de aniquilação pela guerra atómica.
— Temos que lembrar que a União Soviética foi brutalmente invadida pelos nazistas na Segunda Guerra Mundial e esse medo de novas invasões da parte ocidental da Europa e de outros países estava enraizado no imaginário soviético. Então, obviamente, essas atividades espaciais estavam ligadas a um problema específico de defesa — disse ao GLOBO Alberto Silva Betzler, professor de Astronomia da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB).
— Mas também houve objectivos associados ao prestígio nacional, como o Sputnik e outros satélites e sondas essencialmente científicos.
Citado por Betzler, o Sputnik 1 foi o primeiro satélite em órbita terrestre, em 1957, um feito celebrado ao extremo por Moscovo, e que causou um impacto global imediato, especialmente nos EUA.
— O Sputnik chocou o público americano. Acreditávamos ser a comunidade tecnologicamente mais avançada do mundo, e como isso pôde acontecer? Alguém precisa fazer alguma coisa! — disse, em 2009, durante conferência nos EUA, Neil Armstrong, comandante da Apollo 11.
— Um foguete que tivesse o poder e a precisão para colocar um satélite em órbita tinha o poder e a precisão para enviar uma ogiva nuclear através do oceano para um alvo específico.
O Sputnik 1 foi seguido pelo Sputnik 2, em novembro de 1957, que levava a bordo a cadela Laika, o primeiro organismo vivo a ser enviado ao espaço, mas que morreu em órbita.
Durante décadas, a causa da morte foi ocultada pelas autoridades, até que em 2002 seu destino foi conhecido: ela não suportava as altas temperaturas a bordo da espaçonave, algo confirmado por Dimitri Malashenkov, um dos engenheiros por trás do lançamento.
“No final, revelou-se praticamente impossível criar um sistema de controlo de temperatura fiável face a tantas restrições de tempo”, escreveu Malashenkov num artigo.
Um ponto forte do programa soviético, além do desenvolvimento de foguetes com capacidades cada vez maiores, embora sem a confiabilidade esperada, foram as sondas espaciais.
O programa Luna, que visa explorar o nosso satélite natural, foi mantido em absoluto sigilo pelo Kremlin, e foi o primeiro a obter imagens e pousar na Lua. O projeto Venera (“Vênus” em russo), iniciado em 1963, enviou sondas a Vênus, e no início da década de 1980 trouxe para a Terra as primeiras imagens coloridas de outro planeta.
— Esse projeto foi iniciado pelos russos, e os americanos nunca conseguiram pousar um veículo em Vênus por causa das condições absolutamente ferozes — Roberto Dell’Aglio Dias da Costa, professor do Departamento de Astronomia da Universidade de São Paulo (USP) ), disse ao GLOBO. — E os russos desenvolveram esta tecnologia através de tentativa e erro.
Outro projeto planetário, Marte, marcado por inúmeros fracassos, conseguiu, em 1971, pousar o primeiro objeto humano no solo do planeta vermelho — a sonda perdeu contato com Moscou menos de dois minutos depois.
Propaganda espacial
A expansão espacial, além de impulsionar o desenvolvimento tecnológico, também serviu como um dos mais importantes pilares da propaganda soviética, e influenciou toda uma linguagem visual dos conhecidos cartazes do regime.
Em artigo na revista Issues de 2020, Alana Quinn, curadora da Academia Nacional de Ciências de Washington, afirma que o objetivo dos cartazes (e do discurso espacial) era “persuadir, informar e incitar o orgulho nacional em cada programa espacial, sem revelar os segredos tecnológicos bem guardados”, e que tiveram sucesso na tarefa.
Além das imagens, o espaço era terreno perfeito para o cultivo de heróis, outro pilar da propaganda estatal.
Yuri Gagarin foi o primeiro ser humano a orbitar a Terra, num voo de menos de duas horas que lhe rendeu inúmeras homenagens e um túmulo no cemitério localizado junto às muralhas vermelhas do Kremlin. Valentina Tereshkova, em 1963, foi a primeira mulher no espaço, enquanto Leonid Volkov, em 1965, foi a primeira pessoa a andar fora de uma nave espacial. Em 1971, quando os EUA já voavam para a Lua, a Salyut-1 foi inaugurada como a primeira estação espacial na órbita da Terra.
— Foi somente com o desenvolvimento da tecnologia ao longo da década de 1960 que os pilotos, ou melhor, os tripulantes, começaram a desempenhar um papel mais ativo. Antes eram muito mais passageiros do que tripulantes — disse Dias da Costa.
Mas numa história de pioneiros, o capítulo lunar é, até hoje, uma página mal explicada do programa espacial soviético. Cercados de sigilo, os planos de envio de uma missão tripulada ao satélite natural foram autorizados em 1964, um ano turbulento dentro do Kremlin, com a deposição do secretário-geral, Nikita Khrushchev, e sua substituição por Leonid Brezhnev. Volkov, que andou no espaço, estaria a bordo da espaçonave ao lado de Oleg Makarov, mas a iniciativa parecia fadada ao fracasso: um símbolo desse cenário eram os recorrentes problemas com os foguetes que deveriam levar a espaçonave à Lua.
— Houve brigas internas entre os engenheiros e o chefe dos projetos, o financiamento também não foi adequado, foi muito menor que o do programa lunar dos EUA — disse Betzler.
— As autoridades não tinham conhecimento da liberação do dinheiro na forma necessária para permitir a realização do processo, independentemente de ter sido com o projeto do foguete N1, de Sergeu Korolev [considerado o “pai” do programa espacial russo]ou UR-700 de Vladimir Chelomey [projetista de mísseis balísticos na URSS].
Mesmo em meio a crises, problemas e acidentes, os soviéticos ainda planejavam enviar Volkov e Makarov à Lua em dezembro de 1968, mais de seis meses antes dos americanos. Mas o sucesso da Apollo 8, que circulou o satélite natural com três astronautas a bordo naquele mesmo mês de dezembro, foi um balde de água gelada.
“Para nós, as férias foram tristes pela realização de oportunidades perdidas e pela tristeza de que os homens que voavam para a Lua não se chamavam Valery Bikorsky, Pavel Popovich ou Alexei Leonov, mas sim Frank Borman, James Lovell e William Anders, ” escreveu Nikolai Kamanin, chefe do departamento de treinamento de cosmonautas, em seu diário.
No mesmo dia em que a Apollo-11 fez seu pouso histórico, uma sonda soviética, a Luna-15, também chegou à Lua. Anos depois, Neil Armstrong disse que a tripulação só foi informada da viagem da Luna-15 quando ela já estava a caminho. A sonda se partiu ao pousar.
— Acho que a Rússia não teve chance de estar à frente dos americanos com Sergei Korolev ou seu sucessor, Vasili Mishin. Korolev não era um cientista ou designer, era um gestor brilhante. Sua filosofia era “não vamos trabalhar em etapas”, mas sim juntar tudo e tentar fazer funcionar — disse Sergei Khrushchev, filho de Nikita Khrushchev, em entrevista à revista Scientific American.
— Quando falamos do programa espacial russo, há uma ideia no Ocidente de que ele era centralizado.
Na realidade, era mais descentralizado do que nos EUA, onde havia um programa Apollo focado. Na União Soviética, havia diferentes designers que competiam entre si.
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