Passados mais de oito anos do rompimento da barragem da mineradora Samarco, as vítimas finalmente conseguiram eleger seus representantes nos diversos órgãos envolvidos no processo de reparação dos danos. Durante reunião realizada no último final de semana em Belo Horizonte, foram escolhidos nomes para preencher mais de 30 vagas. Os respectivos substitutos também foram definidos.
A tragédia completará nove anos no dia 5 de novembro. O rompimento da barragem, que fazia parte de uma mina na zona rural de Mariana, Minas Gerais, lançou uma avalanche de rejeitos que gerou impactos para moradores de comunidades de dezenas de municípios de Minas Gerais e Espírito Santo, em todo o estado. Bacia do Rio Doce. O episódio também deixou 19 mortos.
Para reparar os danos causados, foi assinado em 2016 um Acordo de Transação e Ajustamento de Conduta (TTAC) entre a Samarco, suas acionistas Vale e BHP Billinton, a União e os governos de Minas Gerais e do Espírito Santo. Foram estabelecidos mais de 40 programas, abrangendo temas variados como reconstrução de casas destruídas, indenização aos atingidos, apoio aos produtores rurais, gestão de resíduos na bacia do rio Doce, recuperação ambiental e abastecimento de água aos municípios atingidos.
As mineradoras se comprometeram a garantir os recursos considerados necessários e, para gerir toda a obra, foi criada a Fundação Renova. O acordo também estabeleceu um Comitê Interfederativo (CIF). Coordenado pelo Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) e composto por representantes de diversos órgãos públicos, tem como função definir diretrizes para as ações reparatórias realizadas pela Fundação Renova.
Desde o início, o TTAC foi duramente criticado pelo Ministério Público Federal (MPF) e pelo Ministério Público de Minas Gerais (MPMG), bem como por entidades representativas dos atingidos. Uma das principais reclamações foi a falta de participação das vítimas na negociação e também na implementação das medidas.
Em Junho de 2018, foi assinado um acordo entre as empresas mineiras e as instituições de justiça para resolver a questão. Trata-se de um Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) que ficou conhecido como TAC Governança ou TAC-Gov. Definiu medidas para incluir as vítimas no sistema de governação responsável pelos processos deliberativos. Para tanto, foram alteradas as composições do conselho curador da Fundação Renova e das câmaras técnicas do Comitê Interfederativo.
Porém, só agora, mais de oito anos depois da tragédia e seis anos depois da assinatura do TAC-Gov, as vagas estão sendo preenchidas. Para a estrutura da Fundação Renova, foram eleitos dois membros para o conselho curador, sete para o conselho consultivo e quatro para a diretoria executiva. Também foram escolhidos dois representantes para o Comitê Interfederativo e outros dois para cada uma de suas dez câmaras técnicas, que tratam de temas específicos como saúde, segurança hídrica, economia, restauração florestal, educação, entre outros assuntos.
Também foram eleitos representantes para o Fórum de Observadores. Dependendo do cargo, também poderão ser nomeados um ou dois suplentes. Participaram da seleção representantes de 16 dos 21 territórios reconhecidos. Os povos e comunidades tradicionais afetados ainda organizarão o processo para preencher suas vagas.
Desde 2018, o TAC-Gov vem sendo implementado gradativamente. Previu que em cada território reconhecido os atingidos formariam comissões e também escolheriam uma entidade para atuar como assessor técnico, cujo trabalho deveria ser custeado pelas mineradoras. Alguns representantes chegaram a participar de reuniões das câmaras técnicas do CIF como convidados, ouvintes ou membros temporários. Mas só no ano passado foi concluída a consolidação das comissões em todos os territórios e a contratação de todos os assessores técnicos. Desta forma, é a primeira vez que se realiza uma eleição para preencher as vagas dos afectados em todas as instâncias do sistema de governação da reparação.
Uma nota divulgada pelo MPF trouxe uma avaliação do Ministério Público, Felipe Augusto de Carvalho, sobre todo esse processo. Na sua opinião, desde o início ficou evidente que as pessoas afetadas foram excluídas das decisões, o que violava “o princípio da centralidade do sofrimento das vítimas”. Segundo ele, mesmo após o TAC-Gov, houve dificuldades devido a entraves impostos judicialmente pela Fundação Renova, Samarco, Vale e BHP Billiton, dificultando a formação dos comitês afetados e a contratação de assessores técnicos.
Afirma ainda que a entidade e as três mineradoras desacreditaram as decisões do CIF, que foram consideradas meras opiniões. “A efetividade do TAC-Gov foi sendo cada vez mais adiada. Agora, finalmente, conseguimos as condições para que essas pessoas e comunidades, através dos seus representantes, possam finalmente ter voz ativa nas diversas instâncias decisórias e consultivas do processo de reparação”, afirma.
Procuradas pela Agência Brasil, as mineradoras não se posicionaram sobre o assunto. Em nota, a Fundação Renova afirmou reconhecer a importância da participação coletiva na reparação dos danos causados pelo rompimento da barragem. “A escolha dos representantes comunitários para o sistema de governação está prevista no TAC-Gov e a sua implementação está a ser acompanhada pelas instituições da Justiça, responsáveis pela coordenação e organização da reunião”, acrescenta o texto. A entidade não comentou as críticas do procurador do MPF.
Participação limitada
Apesar da inclusão, as mineradoras continuam com maioria no Conselho Curador da Fundação Renova. Samarco, Vale e BHP Billiton indicam seis dos nove nomes. Entre os demais, dois são representantes das vítimas e um indicado pelo Comitê Interfederativo.
O modelo de reparação implementado na tragédia, com a criação da Fundação Renova para gerir todas as medidas, é hoje considerado malsucedido pelos governos envolvidos e também pelas instituições de justiça. Atualmente, mais de 85 mil casos sobre a tragédia tramitam no Judiciário brasileiro, envolvendo diversos temas como reconstrução de bairros, indenizações, reconhecimento de vítimas, danos ambientais, etc. a responsabilidade legal já existe há mais de dois anos, mas os valores oferecidos pelas mineradoras ainda não atendem às expectativas do governo.
No mesmo evento em que elegeram os seus representantes, os atingidos aprovaram uma carta aberta. Nele, criticam a falta de participação nas negociações do novo acordo. Lamentam que as discussões ocorram em segredo e sem a presença das pessoas afetadas. O texto aponta ainda que, mesmo com as eleições de deputados, há pouco o que comemorar. Segundo os afectados, o modelo em vigor impossibilita que as comunidades assumam um papel de liderança na procura de soluções para os seus próprios problemas, que envolvem questões diversas como contaminação de água e alimentos, inundações, invisibilidade, insegurança hídrica, doenças mentais, aprofundamento da vulnerabilidade socioeconómica, mudanças nos estilos de vida, etc.
“O processo participativo continua falho. Em primeiro lugar, porque é imposto sem discussão, de cima para baixo, com os mais interessados, os atingidos que suportam e sofrem as consequências deste crime há quase 10 anos. em termos de participação são poucos, insuficientes e não permitem a representação de todas as pessoas e categorias afectadas, dada a posição minoritária dos afectados. Enquanto as pessoas afectadas disputam alguns cargos de governação, as empresas criminosas continuam a lucrar e a violar os direitos dos cidadãos. pessoas intensificando os vestígios de danos deixados pela ruptura”.
Embora persistam limitações, a Associação Estadual de Defesa Ambiental e Social (Aedas), uma das entidades que prestam apoio técnico às vítimas da tragédia, divulgou comunicado no qual considera que a eleição de representantes fortalece o direito à participação. O texto destaca ainda que esse direito passou a ser previsto pela Política Nacional dos Direitos das Populações Atingidas por Barragens (PNAB), como ficou conhecida a Lei Federal 14.755, aprovada no ano passado.
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