Um relatório publicado hoje (27) indica que a tecnologia de reconhecimento facial tem sido usada ilegalmente em estádios de todo o país. Crianças e adolescentes menores de 16 anos estão sendo submetidos aos mesmos procedimentos de controle biométrico dos adultos, violando o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) e a diretriz estabelecida na Lei Geral do Desporto (artigo 158).
“Tem clubes que estão cadastrando crianças de colo, que têm catracas pequenas para elas entrarem. Porém, as crianças estão sujeitas a uma lei específica que, se para os adultos não houver mais referência à LGPD (Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais) na Lei Geral do Desporto, quem o dirá em relação ao ECA. É uma preocupação principalmente com a possibilidade de vazamento e utilização desses dados para, por exemplo, alimentar a base de dados de inteligência artificial”, afirma Raquel Sousa, uma das autoras do relatório, que é mestre em Ciências Sociais pelo Estado. Universidade do Rio. de Janeiro (Uerj).
As conclusões são de O Panóptico, grupo de pesquisadores que monitora novas tecnologias em segurança pública no Brasil do Centro de Estudos de Segurança e Cidadania (CESeC). O relatório, denominado “Esporte, Dados e Direitos: O uso do reconhecimento facial nos estádios brasileiros”, fala sobre riscos para crianças, adolescentes e grupos minoritários.
Segundo os pesquisadores, o uso dessa tecnologia em crianças e adolescentes também viola o Termo de Acordo entre a Confederação Brasileira de Futebol (CBF) e o Ministério da Justiça e Segurança Pública (MJSP) e a Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD), que prever a coleta e compartilhamento de dados após os 18 anos.
Falhas e discriminação
O relatório reforça que podem levar a impedimentos de acesso, abordagens violentas e até prisões injustas. E cita o Programa Estádio Seguro, parceria entre a Confederação Brasileira de Futebol (CBF) e o Ministério da Justiça e Segurança Pública (MJSP) para ampliar o uso dessas tecnologias para fins de segurança pública.
Outro ponto destacado é o fato de que essas tecnologias resultam em discriminação e impactam desproporcionalmente grupos sociais específicos, com base em classe, cor e gênero. É citado um estudo de 2018 sobre as taxas de erro serem maiores para mulheres negras (34,7%), enquanto o erro máximo para homens brancos foi de 0,8%.
Um dos casos lembrados aconteceu em abril deste ano, com o personal trainer João Antônio Trindade Bastos, de 23 anos, preso na final do Campeonato Sergipano devido a um erro no sistema de reconhecimento facial.
“João Antônio, torcedor do Confiança, é negro. A população negra, principalmente as mulheres negras, sofre uma série de violências por parte da sociedade. Expor eles a um erro tão maior, num momento em que vão ter algum tipo de lazer, é expor pessoas que já sofrem socialmente com diversos tipos de violência a mais um, num momento que deveria ser de alegria, de felicidade ”, diz Raquel.
No Brasil, 20 estádios utilizam biometria facial e outros dois estão em fase de estudo. Entre os clubes de futebol analisados, Goiás informou que possui catracas menores para reconhecimento facial de crianças. No total, são 210 mil torcedores cadastrados: 30 mil têm entre dois e 14 anos, ou seja, 14,3% do total. Botafogo, Flamengo, Fluminense, Palmeiras e Vasco da Gama não responderam ao pedido de informações sobre crianças cadastradas.
Apenas cinco empresas prestam serviços de controle biométrico: bepass, sistema club, facepass, imply e tik+. Os dados biométricos dos torcedores são enviados apenas uma vez, antes do acesso à página de compra de ingressos, no site site do próprio clube. Porém, o cadastro dos torcedores é gerenciado por uma empresa, que nem sempre produz ingressos. No Maracanã, três empresas diferentes trabalham com dados de acesso dos torcedores ao estádio por meio de biometria.
“O vazamento desse tipo de dados pode ser muito mais fácil, principalmente pela troca de dados entre empresas para que o torcedor simplesmente entre no estádio. E ele poderia entrar por outros meios. A justificativa de segurança poderia ser obtida por outros meios. Você expõe os dados, que podem ser utilizados pelo clube ou por outras empresas para fins comerciais, o que muda a imagem do torcedor como membro de uma cultura para uma lógica de comércio, de consumo”, afirma Raquel Sousa.
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