A coordenadora do Centro Especializado de Cidadania e Direitos Humanos de São Paulo, Fernanda Balera, disse que as intervenções do Poder Público na Cracolândia, região central da capital, não são novas, mas geram apreensão. Ela acompanhou, junto à Defensoria Pública, as ações desenvolvidas nesta segunda-feira em que a Guarda Civil Metropolitana utilizou spray de pimenta e balas de borracha.
Fernanda relembrou a instalação, na semana passada, de bares nas duas entradas da Rua dos Protestantes, onde ocorre o fluxo de moradores de rua e usuários de drogas desde julho de 2023. A multidão foi levada ao local após ser deslocada de outros pontos por meio de operações policiais . Aos poucos, a multidão começou a ocupar, além da estrada, um terreno baldio no mesmo quarteirão.
Além de oferecer orientação jurídica, os defensores coletaram relatórios e observaram a atuação da Guarda Civil Metropolitana.
No início de abril deste ano, a prefeitura instalou grades nas duas entradas da rua ocupada pelo fluxo. Nas últimas semanas de maio e início de junho, foi construído um muro em torno do terreno, no lado que dá para a estrada paralela, Rua General Couto de Magalhães. As cercas liberaram uma das faixas da estrada para a passagem de carros, tornando o terreno ocioso o centro de concentração de pessoas. A mudança de configuração coincide com um esvaziamento do fluxo observado em maio e junho.
“Estamos vendo isso com muita preocupação, porque não é novidade instalar cercas e cercar o fluxo dessa forma. Historicamente, essas medidas apenas aumentam a tensão, dificultam o trabalho das equipes de saúde e assistenciais e restringem a liberdade. Então, a gente também está aqui para entender como está essa dinâmica, se as pessoas estão impedidas de circular e o que está acontecendo”, disse Fernanda em entrevista ao Agência Brasil.
Spray de pimenta e bala de borracha
Os defensores públicos acompanharam uma das ações de limpeza, quando o fluxo foi movimentado para que a área pudesse ser varrida pelas equipes da prefeitura. As pessoas são retiradas em fila da área cercada e obrigadas, pela Guarda Civil, a sentar na calçada oposta até a conclusão da obra. São vários momentos de tensão, pois à medida que são deslocados, as pessoas são revistadas e muitos objetos pessoais são retirados pelos guardas.
Durante a ação, houve uso de spray de pimenta pelo menos uma vez e, duas vezes, os guardas dispararam balas de borracha contra a multidão. Uma lata de tinta foi atirada da multidão contra os guardas.
“Conseguimos acompanhar a ação de limpeza, os momentos anteriores à limpeza, onde a Guarda Civil fez buscas generalizadas e foram retirados muitos pertences pessoais”, resumiu Fernanda Balera, que pretende sistematizar e analisar a informação recolhida antes de tomar medidas .
Em depoimento tomado pela defesa, Rafael Francisco, frequentador assíduo da Cracolândia, disse que a violência é recorrente. “Eles trancam-nos em dois horários: aproximadamente às 9h e depois às 14h, depois do almoço”, disse, referindo-se às ações de limpeza que acontecem diariamente. “Se estiver chovendo, ficamos na chuva. Não há água para bebermos, não há banheiro para usar. Não tem comida, não podemos fazer nada e ficamos ali trancados sob a pressão deles, jogando gás de pimenta, rindo na nossa cara”, disse ele na reportagem que autorizou a ser publicada pelo repórter.
Espaço de saúde
O terreno atualmente ocupado pelo fluxo da Cracolândia foi desapropriado pela prefeitura de São Paulo em 2005. Na época, foram declarados de uso público um total de 105 mil metros quadrados. Os imóveis, que abrigavam lojas e bares, foram demolidos em 2006 com o objetivo de “revitalizar” a região. Sugerido pela gestão do então prefeito Gilberto Kassab, o projeto Nova Luz tinha como objetivo atrair investimentos privados para o bairro. A área está abandonada desde então.
Segundo a prefeitura de São Paulo, “foi criado um espaço de saúde em parte da Rua dos Protestantes”. Os bares servem, segundo nota do Executivo municipal, para facilitar o acesso das equipes de saúde e assistência social. “A instalação deste espaço serve para avançar cada vez mais no trabalho de sensibilização dos consumidores de álcool e outras drogas, em situação de vulnerabilidade, para tratamento e aceitação de ofertas de acolhimento”, acrescenta o comunicado da Câmara Municipal.
O muro, que circunda o terreno, foi erguido, segundo a prefeitura, “para substituir um revestimento metálico que era sistematicamente rompido e para estimular a circulação de moradores, trabalhadores e demais transeuntes pelo calçadão da Rua Couto de Magalhães”. .
Redução de fluxo
Nos últimos meses, a concentração de pessoas na Cracolândia diminuiu. Segundo monitoramento de cenas de uso, feito pela Secretaria Municipal de Segurança Urbana com drones, o fluxo contou com mais de 500 pessoas pela manhã e cerca de 600 à tarde, entre janeiro e março deste ano. Em abril, foi registrada uma média de 452 pela manhã e 470 à tarde. Em maio, o número médio caiu para 296 pela manhã e 371 à tarde. Em junho, foram 294 pessoas pela manhã e 382 à tarde. Porém, a contabilização não é feita à noite, quando as aglomerações tendem a aumentar.
A prefeitura atribui a redução de aglomerações de pessoas “às medidas adotadas, tanto na prestação de serviços e equipamentos nas áreas de saúde e assistência social, quanto no aumento da segurança e no combate ao tráfico”.
Novas desapropriações
A Defensoria Pública também realizou um esforço de assistência jurídica para monitorar a situação das pessoas que devem ser afastadas pelo projeto do novo centro administrativo do governo do estado.
No final de março, o governo paulista lançou o projeto de construção de um novo centro administrativo no bairro Campos Elíseos, para onde a Cracolândia se mudou nos últimos anos.
A proposta prevê a desapropriação e demolição de quatro quarteirões inteiros, além de outras áreas, no entorno da Praça Princesa Isabel, na região central de São Paulo. Com a liberação do terreno, deverão ser construídas torres de 30 andares para abrigar cerca de 22 mil funcionários de secretarias e órgãos estaduais, que hoje atuam em localidades da cidade. A previsão é gastar R$ 3,9 bilhões para tirar a ideia do papel, sendo R$ 500 milhões de indenização por imóveis desapropriados. O governo do estado estima que cerca de 800 pessoas, entre inquilinos e proprietários, terão que deixar suas casas para dar lugar ao novo centro administrativo.
Dúvidas
Os moradores da região, principalmente os que moram em cortiços e pensões, faziam longas filas para receber atendimento da Defensoria Pública e tirar dúvidas sobre seus direitos. “A ideia é entender quem foi ou não cadastrado e que tipo de programa habitacional foi oferecido. Historicamente acompanhamos a região e todas as remoções que foram realizadas, muitas pessoas foram colocadas nas ruas ou ficaram completamente sem nenhum auxílio moradia. A ideia é avançar nisso, verificar a questão dos cadastros para poder garantir os direitos das pessoas”, explicou Fernanda Balera sobre o mutirão.
Entre as remoções citadas pelo zagueiro estão as realizadas no quarteirão vizinho, no entorno do Liceu, no Largo Coração de Jesus. Após a megaoperação policial de maio de 2017, pequenos prédios e casarões foram desapropriados para construção de moradias em parceria público-privada. Apesar da desocupação, os imóveis ainda não foram totalmente demolidos e os empreendimentos não começaram a ser construídos.
Uma das pessoas que procurou atendimento da defesa foi Benilton João de Souza, que trabalha com cabeamento telefônico, mas atualmente está desempregado. Ele mora há seis meses em uma das pousadas da Alameda Barão de Piracicaba, no quarteirão que será totalmente demolido, e tinha muitas dúvidas sobre o processo. “Se teremos prazo para desocupar, se haverá benefícios, como será o andamento”, listou os questionamentos.
A Companhia de Desenvolvimento Habitacional e Urbano do Estado de São Paulo entrou em contato com moradores da região e abriu uma central de atendimento para tirar dúvidas. O governo do estado informou que há um projeto em andamento, “que prevê a construção de moradias na região central da capital, por meio de parceria público-privada, que poderá atender a demanda da população residente em Campos Elíseos”.
Concurso
Foi aberto concurso para escolha do projeto de arquitetura que irá remodelar o espaço. Segundo o governo do estado, foram recebidas 50 inscrições de escritórios de arquitetura. Os resultados da competição devem ser divulgados em agosto.
O secretário estadual de Projetos Estratégicos, Guilherme Afif Domingos, disse que o projeto é uma ideia antiga que foi retomada, a pedido do governador Tarcísio de Freitas. “Como o governo do estado poderia colaborar? Essa foi a pergunta de Tarcísio. Eu falei: Tem um projeto que foi jogado na gaveta e partimos para recuperar o marco zero de São Paulo. Para quem não conhece, Campos Elíseos é o primeiro bairro projetado [da cidade]”, disse ao apresentar o projeto em palestra na Associação Comercial de São Paulo, em março.
O objetivo, segundo Afif, é aumentar a ocupação no centro de São Paulo. “Hoje temos um centro abandonado à mercê da população em situação de rua e do tráfico de drogas”, disse na época.
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