Um grupo de 100 mães que perderam seus filhos em operações policiais se reuniu nesta sexta-feira (6) no primeiro encontro de um projeto organizado pela Rede de Atenção às Pessoas Atingidas pela Violência do Estado (Raave) e pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). ).
Ao longo de um ano, eles receberão uma bolsa mensal e participarão de uma série de discussões e pesquisas. Um dos objetivos é chegar ao final do projeto com uma proposta de política pública envolvendo os direitos dos atingidos pela violência do Estado. A iniciativa também conta com o apoio do Ministério da Justiça e Segurança Pública.
O projeto foi concebido a partir das atividades desenvolvidas pela Raave, que é formada por instituições de defesa dos direitos humanos, movimentos de mães e familiares de vítimas e grupos clínicos que prestam atendimento psicossocial. Em parceria com o Instituto de Psicologia da UFRJ, algumas dessas mães já recebiam atendimento e apoio na universidade.
Em junho, foi realizado o processo seletivo para distribuição de 100 bolsas. A UFRJ efetuará o pagamento em 12 meses. Em troca, as mães precisarão se comprometer com as orientações do Raave e manter a participação nas reuniões. Porém, como muitos vivem em áreas com presença de organizações criminosas e onde ocorrem operações policiais frequentes, a orientação é que ninguém se exponha a uma situação perigosa. “Se houver operação policial, avise-nos para termos conhecimento. Ninguém deve colocar a vida em risco”, destacou o advogado Guilherme Pimentel, que integra a coordenação técnica do Raave.
O primeiro encontro aconteceu no auditório do prédio da Defensoria Pública do Rio de Janeiro (DPRJ), uma das instituições que compõem a Raave. Toda a equipe que apoiará o projeto foi apresentada. Estão envolvidos estudantes, pesquisadores e professores de diversas instituições como a UFRJ, a Universidade Federal Fluminense (UFF) e a Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj). As mães foram divididas em 11 grupos de acordo com a localidade onde residem. O trabalho de cada um deles será acompanhado por dois alunos.
“Nenhum direito cai do céu. Todo direito neste país surgiu a partir do momento em que as pessoas se uniram em um coletivo, lutaram e conquistaram esse direito. E é por isso que você está aqui. Se precisamos de uma política pública para reconhecer direitos, precisamos gente organizada”, disse Guilherme Pimentel.
Segundo dados divulgados em comunicado da Raave, foram recebidas 162 inscrições no processo seletivo aberto para distribuição de 100 bolsas. Mais de 80% eram moradores de favelas que ganhavam menos que um salário mínimo. Muitos deles estão empenhados na luta por direitos e contra o abandono do poder público.
“Além da dor da perda violenta de seus filhos, eles vivenciam condições de vida precárias. Isso, porém, não pode impedi-los de se organizarem coletivamente não apenas para buscar justiça para seus filhos, mas também para conquistar políticas públicas para os familiares, e defender os direitos sociais da população em geral”, registra o texto divulgado por Raave.
Perfil
Entre os cadastrados, 94% têm outros filhos além daquele que foi assassinado e apenas 9% tinham algum vínculo empregatício. Mais da metade relatou estar desempregada, ser dona de casa ou trabalhar por conta própria. Quanto à fonte de renda, a maioria mencionou ser beneficiário de programas sociais, como o Bolsa Família.
Raave chama a atenção para o fato de que muitas vezes o filho assassinado é uma pessoa que ajuda financeiramente a casa e, dessa forma, o episódio gera não só a dor da perda, mas também um empobrecimento da família. Ao mesmo tempo, a falta de uma política psicossocial pública voltada para essas mães acaba criando um contexto de adoecimento, consequentemente afastando-as ainda mais do mercado de trabalho.
“É uma bola de neve, que produz uma série de outros problemas, com consequências prejudiciais para eles e para os demais filhos”, pondera Dejany Ferreira, que também atua na coordenação técnica do Raave. O alto nível de engajamento na luta por direitos é destacado como mecanismo de produção de saúde. Para Raave, ao se organizarem, essas mulheres criam um ambiente de apoio psicossocial mútuo.
Uma das bolsistas é Andressa Laranjeiras. Ela é mãe de Matheus Laranjeiras, jovem morto durante operação policial em outubro de 2021 na Comunidade Risca Faca, em Maricá (RJ). Testemunhas afirmaram na ocasião que a vítima, que não estava envolvida no crime, foi atingida na cabeça durante uma troca de tiros entre agentes e traficantes.
Andressa segue lutando por justiça pela morte do filho e até montou um dossiê que apresentou ao Ministério Público do Rio de Janeiro (MPRJ). “Nunca imaginei vivenciar isso na comunidade onde cresci, casei e tive meus filhos. Quando morre uma criança, morre toda a família. Morri com meu filho. Só existo para ver a justiça ser feita”, disse. Ela destacou a importância da mobilização coletiva. “Sou muito grato a Raave. Graças a ela, minha luta não é mais sozinha e solitária. Porque sua própria família tem medo e muitas vezes incentiva você a desistir. Mas eu não vou desistir.”
Objetivos
O projeto espera apresentar ao Ministério da Justiça e Segurança Pública uma sugestão de política pública que envolva a garantia dos direitos das pessoas afetadas pela violência do Estado. Para tanto, após o ciclo básico que envolverá mães bolsistas ao longo de um ano, a proposta elaborada no Rio de Janeiro será apresentada a familiares de vítimas de violência policial em outros estados do país. Desta forma, novas contribuições devem ser agregadas com o objetivo de conferir um caráter nacional às políticas públicas.
Este, porém, não é o único objetivo do projeto. Guilherme Pimentel explica que a iniciativa visa também acolher novas famílias vitimadas pela violência do Estado. Essa também será uma missão das mães bolsistas. “Aqui vocês são pesquisadores e toda a nossa organização será construída através da ação coletiva. Temos que assumir um compromisso: ninguém fica para trás”, acrescentou Pimentel.
O projeto proporcionará também a produção de conhecimento que visa fortalecer a luta por direitos. Os dados socioeconômicos das candidaturas às bolsas já contribuirão para o desenvolvimento de pesquisas sobre o tema. Além disso, durante as reuniões e no processo de acolhimento das novas famílias, as mães trabalharão para identificar dificuldades que impeçam o pleno acesso aos direitos.
Todas as atividades do projeto foram planejadas para promover uma aliança entre o conhecimento acadêmico e o conhecimento popular. Embora mais de metade dos participantes nunca tenha ultrapassado o ensino básico, há um foco na sua capacidade de mobilizar as suas experiências, vivências e competências para formular propostas.
“Para nós, a produção de qualquer política pública que pretenda ser eficiente precisa ter a centralidade de quem vive a realidade. Não podemos produzir nada sobre a vida das pessoas sem as próprias pessoas. Portanto, essas mães serão pesquisadoras e assinarão a coautoria desta proposta de política pública”, explica a professora do Instituto de Psicologia da UFRJ Mariana Mollica, coordenadora do programa de bolsas.
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