O cheiro de urina é forte quando você se aproxima do prédio. Lençóis substituem janelas. Arbustos crescem ao longo da fachada, dando ao edifício de oito andares uma aparência abandonada adicional. Tudo parece estar desmoronando, desmoronando lentamente. No portão de ferro preto da entrada, dois números pintados de branco informam ao correio que se trata do número 53 da Avenida Venezuela, na zona portuária da cidade do Rio de Janeiro.
Este imóvel insalubre e inseguro, que inclusive está oficialmente fechado pela Defesa Civil, é a “casa” de cerca de 100 pessoas, que, por motivos diversos, precisaram procurar moradia e consideraram que ali seria a alternativa menos pior.
O local é apenas um dos 69 prédios abandonados da região central do Rio de Janeiro, que foram transformados em moradias para 2.435 famílias desabrigadas, segundo levantamento divulgado recentemente pelo Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional (Ippur) da Secretaria Federal. Universidade do Rio de Janeiro (UFRJ), Observatório de Metrópoles e Central de Movimentos Populares.
Segundo a pesquisa, 50 imóveis ocupados (72,5% deles) são privados e 19 são públicos (27,5%). A maioria (34 imóveis) é constituída por edifícios verticais. Mas também há ocupações em antigos casarões (18), conjuntos de casas (11), terrenos ocupados (cinco) e instalações fabris ou armazéns (um).
Em 30 ocupações visitadas, o estudo constatou que as famílias geralmente viviam em quartos unifamiliares. Mas também foram identificados quartos onde moravam mais de uma família. Os pesquisadores também perceberam que cerca de 25% dos quartos eram ocupados por mães solteiras e que mais de 500 crianças moravam nessas propriedades.
A pesquisa mostrou que a ocupação desses imóveis se torna uma alternativa habitacional para os segmentos sociais mais vulneráveis, como mulheres negras, mães solteiras, moradores de rua, pessoas egressas do sistema penitenciário, desempregados, migrantes, pessoas LGBTQIA+ vítimas de violência, entre outros grupos. grupos sociais vulneráveis.
Ocupação Zumbi dos Palmares
No caso do número 53 da Avenida Venezuela, dezenas de famílias, entre idosos, adultos, jovens e crianças, estão divididas em quartos improvisados espalhados pelos andares daquele prédio abandonado, numa região da cidade que vem recebendo milhões de reais em investimentos para revitalização, desde antes dos Jogos Olímpicos Rio 2016.
O coletivo de moradores, denominado Ocupação Zumbi dos Palmares, teve início em 2005 e teve que enfrentar remoção forçada em 2011, mas, diante do contínuo abandono do prédio, voltou a sofrer ocupações por novas famílias nos anos seguintes. A ocupação atual começou pouco antes do início da pandemia da Covid-19.
Quase 20 anos se passaram desde a primeira ocupação por moradores de rua e a incerteza quanto ao futuro permanece entre aqueles que ali vivem. O proprietário do prédio, o Instituto Nacional do Seguro Social (INSS), tenta recuperar a posse do imóvel na Justiça.
O prédio, que já foi sede do Instituto de Aposentadorias e Pensões dos Trabalhadores em Transportes e Cargas (Iapetec), está há anos sem uso do INSS e é classificado pelo instituto como “não operacional”, segundo a Assessoria Jurídica Popular Centro (Najup), da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).
Ainda segundo Najup, o prédio está em processo de transferência para a Secretaria do Patrimônio da União (SPU), que, por sua vez, informou que o imóvel ainda não está sob sua administração.
Uma pesquisa realizada por Najup em 2022, com 54 moradores da ocupação Zumbi dos Palmares, mostrou que 85,2% são negras ou pardas, 64,8% são mulheres cis e 3,7% são mulheres trans. Entre os chefes de família, 63% são mulheres, das quais 34,3% são mães solteiras. Dos moradores, 61 eram crianças e adolescentes.
“São famílias que estavam em outras ocupações urbanas da região central, que também eram precárias; muitas pessoas que estavam desabrigadas; algumas mulheres vítimas de violência doméstica; algumas pessoas trans”, diz Mariana Trotta, professora da Faculdade Nacional de Direito da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), que coordena o Najup. “É principalmente uma multidão de vendedores ambulantes, catadores de material reciclável e algumas pessoas que vivem apenas de doações. São pessoas extremamente vulneráveis.”
Dificuldades
Larissa Rodrigues, 26 anos, mora com três dos cinco filhos. Fugindo de uma situação de violência doméstica, ela saiu de casa e teve que encontrar um novo refúgio.
“Moro aqui há três anos, mas o prédio está cheio de rachaduras e treme muito. A água é escassa e a bomba só consegue abastecer até o quarto andar. Quem mora na quinta e na sexta tem que descer para pegar água. E a luz é complicada, porque só quem pode comprar fiação tem luz. Se você não tem dinheiro para comprar fio, você não tem luz.”
Larissa, que é beneficiária do Programa Bolsa Família, mas vende doces para complementar a renda, conta que outro dia teve um sonho auspicioso. “Sonhei que alguém veio me procurar, com uma chave”, conta esperançosa. “Quem sabe, talvez as chaves de uma nova casa estejam chegando”, disse ela.
A manicure Thayane Cristina, 28 anos, também teve que sair de casa, vítima de um relacionamento abusivo, com as filhas. “Separei-me do meu marido e passei uma semana na praia, com os filhos, sem ter para onde ir. Antes de vir para cá, tentei morar em outra casa grande. Era estranho viver sem água e luz. Mas para sair daquele sofrimento que vivia em casa, tive que ir até lá. Depois vim para cá, que foi melhor e acabei ficando”.
Hoje ela tem quatro filhas, com idades entre um e nove anos. Mesmo morando em um imóvel com risco estrutural há cerca de dois anos, Thayane diz que prefere ficar lá do que na rua. Ela entende que a melhor solução para os moradores de Zumbi dos Palmares seria reformar o prédio para que ali pudessem permanecer. Se isso não for possível, ela gostaria de morar em outro lugar no centro da cidade.
“Todo dia é o mesmo desespero, de alguém vir aqui, nos despejar e a gente não ter para onde ir. Todo mundo aqui tem uma história. Ninguém está aqui porque quer”, afirma Thayane. “O risco de morar aqui fica claro pelas rachaduras na parede. Mas se sairmos daqui, para onde iremos com todas estas crianças?”
Para encontrar uma solução para o prédio da Avenida Venezuela e seus moradores, o Ministério Público Federal convocou audiência pública para o dia 16. Foram convidados representantes do INSS, da Secretaria do Patrimônio da União, do Ministério das Cidades e das secretarias estaduais. e Habitação municipal.
Segundo o procurador regional adjunto dos Direitos do Cidadão do Rio de Janeiro, Julio Araujo, o objetivo da audiência pública é garantir a resolução dos problemas estruturais do imóvel e a destinação do prédio para moradia digna para famílias de baixa renda.
“O Ministério Público entende que, independentemente dos problemas estruturais do imóvel e da eventual necessidade de remoção temporária de moradores, é fundamental garantir a destinação daquele imóvel para finalidade social e finalidade social de habitação, por se tratar de um prédio vago que o INSS não ocupa, [um prédio] que há muito tempo não cumpre sua função social”, explicou Araujo, ao Agência Brasil.
Autoridades
A Defesa Civil Municipal realizou 23 fiscalizações no prédio da Avenida Venezuela desde 2007, sendo a última delas no dia 29 de maio deste ano. Segundo o órgão, nesta última fiscalização, os técnicos identificaram “o mau estado de conservação do local, com condições insalubres e instalações clandestinas que podem representar risco de incêndio. O imóvel foi interditado pela Defesa Civil e o documento foi entregue aos funcionários do INSS, pois a fiscalização foi realizada na presença de representantes do instituto”.
A Defesa Civil informou que também encaminhou o relatório técnico à Secretaria Municipal de Assistência Social e à Subprefeitura do Centro.
Segundo Mariana Trotta, os problemas estruturais do imóvel colocam em risco a vida dos moradores. Para ela, a solução seria conceder provisoriamente aluguel social a essas famílias, até que sejam realocadas para um imóvel permanente no centro da cidade.
“Ou que o imóvel fosse requalificado pelo INSS ou pela Secretaria do Patrimônio da União, através desse programa de democratização dos imóveis da União, para que fosse feito arrendamento social para essas famílias”, destacou o professor da UFRJ.
Por meio de sua assessoria de imprensa, o INSS informou que está negociando com a prefeitura do Rio de Janeiro para que a prefeitura municipal possa adquirir o imóvel na Avenida Venezuela e fazer a devida destinação das pessoas que atualmente o ocupam.
O Ministério das Cidades não respondeu à Agência Brasil sobre possíveis propostas para o destino da ocupação. A Secretaria Estadual de Habitação informou apenas que o prédio pertence ao governo federal.
Segundo a Secretaria Municipal de Habitação, a prefeitura já cadastrou os moradores da ocupação Zumbi dos Palmares e está retomando o Programa Minha Casa, Minha Vida junto ao Governo Federal para dar continuidade às ações necessárias.
Contudo, o Secretariado não respondeu à Agência Brasil sobre quais são os planos habitacionais para famílias que vivem em outras ocupações no centro da cidade do Rio de Janeiro.
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