Após quase 80 anos de funcionamento, o bar e restaurante Spaghettilândia, no coração da Cinelândia, encerrou suas atividades, deixando mais que um legado gastronômico e boêmio. Localizado numa região central do Rio de Janeiro que sempre foi ponto de encontro de intelectuais, artistas e políticos, o restaurante contou com clientes ilustres, como Dominguinhos, João Nogueira e Nei Lopes.
E também se tornou palco de discussões acaloradas. Uma dessas brigas, porém, durou décadas e colocou frente a frente dois dos maiores nomes da poesia brasileira: Ferreira Gullar e Augusto de Campos. Pode-se dizer que esta é a disputa literária mais longa do país.
Houve até lobby para inauguração no local de uma placa comemorativa da polêmica, iniciada em uma noite de 1955. Duas figuras-chave da vanguarda poética, Gullar e Augusto de Campos, se reuniram na Spaghettilândia para debater o legado de Oswald de Campos. Andrade, um autor modernista. polêmico, que foi esquecido na época.
Até a morte de Gullar, em 2016, cada um mantinha sua versão do que se falava naquela noite. Gullar afirmou ter feito uma defesa tão original e persuasiva de Oswald à mesa que teria mudado a percepção de Campos sobre o escritor. Com isso, teria plantado a semente que reabilitou Oswald entre os expoentes do concretismo – movimento do qual Campos e seu irmão Haroldo fizeram parte.
Campos, que completou 93 anos em fevereiro, não só ridiculariza a afirmação, mas também afirma que nunca se encontrou com o colega no restaurante do Centro do Rio.
Durante a década de 2010, “Spaghettigate” ganhou novos capítulos nas páginas dos jornais, com mais provocações públicas. Quando Oswald de Andrade foi homenageado na Feira Literária Internacional de Paraty, em 2011, Ferreira Gullar publicou coluna na Folha de S. Paulo em que, mais uma vez, relembrou o encontro na Spaguettilândia e vangloriou-se da redescoberta de Oswald. Campos respondeu alguns dias depois:
“Gullar inventou uma conversa de bar há mais de 50 anos para tentar menosprezar meu apreço por Oswald de Andrade, pelos muitos estudos que publiquei e, por extensão, pelos de Décio Pignatari e Haroldo de Campos contra qualquer obra dele, que sobre Oswald tenha um poema de circunstância tirado do fundo da gaveta”, escreveu. “O encontro na Spaghettilândia nunca aconteceu. No Rio só como espaguete recomendado por amigos. A bobagem do Oswald é porque nós o resgatamos. (…) Casca frágil do trabalho alheio.”
Campos zombou do que chamou de “neomemória” de Gullar, sugerindo que ele inventou a história para valorizar sua carreira literária. Gullar já manteve sua versão e chegou a reunir documentos e testemunhas que corroborassem seu papel nessa história.
“Na tentativa de demonstrar que o encontro foi invenção minha, (Campos) cita uma crônica em que confesso que esqueci o que li, o filme que assisto, até mijo na lata de lixo, pensando que é o banheiro”, rebateu. . Gullar, no mesmo jornal. “Ele usa desonestamente essa auto-zombaria para insinuar que nada do que eu digo merece crédito. O engraçado é que Chico Buarque, depois de ler a crônica, me disse que também havia mijado, por distração, na lata de lixo…”
O poeta também reafirmou o local do “encontro” histórico (real ou imaginário, cabe ao leitor):
“Escolhi a Spaghettilândia porque ficava a apenas uma quadra do local onde eu trabalhava”, escreveu. “Acontece que é mais fácil pegar um mentiroso do que um coxo.”
As informações, inclusive, corroboram a ideia de que se trata da Spaghettilândia no centro da cidade, e não em suas filiais que existiam na época nos bairros de Copacabana e Largo do Machado, na Zona Sul.
O comportamento dos dois mais velhos, que ao final de uma carreira premiada e renomada insistiram em manter uma rusga que durou quase 60 anos com violência desmedida, deixou perplexas novas e velhas gerações. Mas também se tornou uma história folclórica, comentada por algumas das principais mentes do país.
Em 2016, o cronista Ruy Castro, outro frequentador do restaurante, também dedicou ao episódio uma coluna na Folha de S. Paulo, sugerindo que os dois poetas deveriam se reconciliar. O conselho, porém, não foi ouvido por nenhum dos autores, e a disputa continuou até a morte de Gullar, no final daquele ano.
“Se não houver retorno de Gullar e Augusto, sugiro que a Spaghettilândia, ainda em atividade, coloque uma placa na parede: ‘Aqui começou uma linda e frutífera disputa literária’”, escreveu o cronista e imortal da Academia Brasileira de Letras.
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