Guatá ou gwatana língua guarani, tem, entre outros significados, o de viajar, de se deslocar. Tradicionalmente, entre os indígenas brasileiros, o trajeto era feito a pé, daí o termo guatá também pode ser traduzido como caminhar, caminhar. Nas décadas mais recentes, com os novos meios de transporte, o significado foi ampliado para incluir as viagens aéreas.
E isso permitiu que cada indígena guatá mais longe, até mesmo atravessando um oceano. Em setembro, oito doutorandos indígenas brasileiros viajarão para a França, para um intercâmbio que durará de seis a dez meses, em universidades daquele país: dois Guarani (nhãndeva e kaiowá), dois Terenas, além de membros da pipipã, povos xokleng e tupinambá de Olivença e Trumai.
A estudante guarani nhãndeva Maristela Aquino (foto em destaque), 44 anos, mora na região de Dourados (MS), fala guarani e português, mas já está se arriscando no idioma com o qual terá que conviver nos próximos meses, quando participará do intercâmbio na Universidade Paris 8. “Je m’appelle Maristela… Ça va? [Me chamo Maristela. Como vai?]”, faz questão de dizer, ao reunir-se com uma delegação francesa.
“Falo português, guarani e hablo [falo] um pouco de espanhol. Estamos fazendo curso de francês há uns três meses, desde que passei, mas não é fácil. Mas poderemos aprender. Já estamos aprendendo coisas, como nos apresentar, pedir comida. Vamos conseguir, temos que nos dedicar, tentar escrever, tentar falar”, afirma o aluno.
Maristela nasceu e cresceu nas aldeias Guarani do sul de Mato Grosso do Sul. Ela estudou, lecionou em escolas indígenas quando ainda nem havia entrado na faculdade e finalmente se formou em pedagogia, com muito esforço.
“O que me apoiou foi o conhecimento da cultura, do povo, da luta, e fui amparado por um documento indígena que é referência curricular nacional das escolas indígenas. A partir daí comecei a estudar mais e a dar a devida importância aos meus estudos. Mas sempre com muitos desafios, porque não nasci no berço da intelectualidade, dos estudos”, diz Maristela, que teve que trabalhar cozinhando e limpando a casa de um fazendeiro, enquanto estudava.
Concluir a graduação não lhe bastava, decidiu fazer mestrado na Universidade Federal da Grande Dourados (UFGD), na área de antropologia, explorando o conhecimento guarani para propor alternativas agroecológicas para combater a insegurança alimentar nas aldeias onde vivem estas pessoas.
“Nunca aceitei a precariedade do território, sem água, sem campos, sem plantas nativas. As crianças, com fome o tempo todo, iam à escola pegar um prato de comida”, diz Maristela, destacando as dificuldades na vida dos indígenas que vivem em áreas que, muitas vezes, já sofreram degradação anterior, em decorrência da ocupação. colonial destrutivo.
Ao concluir o mestrado, Maristela começou a trabalhar em um projeto para garantir a segurança alimentar e nutricional das comunidades Guarani no Mato Grosso do Sul, por meio do uso de sementes crioulas (desenvolvidas por comunidades tradicionais e pequenos agricultores). E esse trabalho levou o aluno a prosseguir no caminho acadêmico, com doutorado na mesma universidade.
“Em dois territórios onde morei, Passo Piraju e Guyraroka, trabalhei com mulheres, com produção agroecológica, sem venenos. Essa luta contra os agrotóxicos é muito forte. Estamos literalmente consumindo veneno e as famílias Guarani são as mais afetadas. Isto viola os seus direitos à soberania alimentar e nutricional.”
Maristela é uma das selecionadas para participar, este ano, do programa de bolsas Guatá, da Embaixada da França no Brasil. A experiência lhe permitirá aprofundar seus estudos na Europa, trocar experiências com estudantes e pesquisadores daquele continente e mergulhar em uma cultura muito diferente da sua.
“Quero estudar um pouco mais e também dar um pouco de visibilidade ao que está acontecendo aqui no território mato-grossense. E quero voltar mais forte para continuar a luta, porque a luta é grande e é o que me faz viver a minha vida”, destaca o aluno guarani.
A doutoranda Idjahure Kadiwel, de 34 anos, tem uma trajetória um pouco diferente da de Maristela. Filho do ator Mac Suara Kadiwel, um dos indígenas pioneiros do cinema brasileiro, nasceu no Rio de Janeiro. Aos 18 anos decidiu retomar o contato com suas origens Terena e Kadiwéu e viajou para Mato Grosso do Sul, a fim de reencontrar sua família.
“Quando conheci minha avó [Margarida Terena, hoje com 93 anos]ela cantou para mim. Uma canção improvisada, movida pela emoção de conhecer o neto”, lembra Idjahure, que, em sua tese de doutorado, na Universidade de São Paulo (USP), pensou em escrever sobre essa canção Terena, associando-a a uma tradição semelhante de outro país. Povo Arawak, os Baniwa, do norte da Amazônia, ao qual pertence seu companheiro. “Os povos Terena e Baniwa são da mesma família linguística, portanto têm ancestralidade e história comuns.”
Guatá para lugares distantes não é novidade para Idjahure. No meio da graduação, decidiu fazer um intercâmbio de cinco meses na França. Foi uma adaptação difícil para um jovem de 22 anos, que teve que enfrentar diferenças linguísticas e climáticas. “Estava frio, estranho. Eu não sabia de nada.”
Isso não o impediu de viajar outras vezes. Recentemente, esteve com a namorada e o pai dela na Europa, participando de conferências e eventos culturais na Inglaterra, Alemanha e Portugal. “Eu queria ser, pelo menos por um tempo, professor no exterior”, diz Idjahure.
O acadêmico espera aproveitar a viagem para avançar sua tese, escrever artigos em francês e também ajudar pesquisadores europeus a compreender melhor a realidade dos povos indígenas no Brasil.
“Há um florescimento da produção intelectual, cultural e acadêmica indígena no Brasil. Há muitas coisas novas acontecendo aqui, inclusive com antropólogos indígenas. Acho que a tradição francesa [na antropologia] Realmente não se conecta com o que está acontecendo aqui hoje. Quem sabe eu possa compartilhar um pouco disso?” diz o estudante, que também cursa música e gravou recentemente um disco.
O programa Guatá começou no ano passado, enviando quatro estudantes indígenas em intercâmbio para a França. Cinco universidades participaram em 2023. Este ano, 11 universidades brasileiras participaram do processo seletivo e oito alunos foram selecionados.
A adida de Ciência e Tecnologia do Consulado da França em São Paulo, Nadège Mézié, explica que o programa funciona como um doutorado sanduíche, sem a obrigatoriedade de cursar disciplinas em universidades francesas.
“Você está matriculado em uma universidade ou em um laboratório, mas isso não te dá créditos nem projeto final. Ou seja, eles chegam lá e têm certa liberdade para escolher seminários e aulas. Mas também poderão visitar museus, outros espaços académicos e participar em colóquios na Alemanha e em toda a Europa. É muito mais amplo do que sentar em uma sala de aula. Depois eles voltam e terminam o doutorado aqui no Brasil.”
Os indígenas contarão com a ajuda de um professor supervisor, falante de português ou espanhol, que acompanhará os alunos durante a estadia na França. Além da passagem aérea, recebem uma bolsa de 1.700 euros por mês enquanto estiverem no programa.
Em relação à língua francesa, o programa sugere que as universidades brasileiras ofereçam um curso básico de francês enquanto ainda estiverem no Brasil. Ao chegarem à França, poderão frequentar aulas de idiomas oferecidas pelas universidades daquele país.
“Vimos no ano passado que eles vão adquirindo o idioma na rua, com os amigos e participando das aulas, aos poucos. No ano passado, por exemplo, dois alunos não quiseram ingressar [no curso de francês] e aprendi na rua. Mas teve outro que seguiu até o fim [no curso de francês] e fiz o teste para saber o nível de proficiência”, explica Nadège.
A professora da Universidade Paris 8, Delphine Leroy, será a orientadora de Maristela e de outros dois doutorandos indígenas da Universidade Federal da Grande Dourados (UFGD).
“É importante acolher esses estudantes indígenas. Há reconhecimento e valorização de outros tipos de conhecimento. Não apenas o conhecimento académico europeu consolidado, mas outros tipos de conhecimento que são ignorados”, afirma Delphine. “Programas de mobilidade [intercâmbio] servem como efervescência de ideias”, acrescenta a professora.
O grande ganho do Paris 8, por exemplo, é levar esse conhecimento de outras pessoas para estudantes universitários, que pelo perfil socioeconômico não costumam viajar para outros países.
“Trazer estudantes do exterior é uma forma de dar uma sacudida nesses estudantes. [franceses]para mostrar-lhes que é importante viajar. Queremos incomodar nossos alunos, sacudi-los. Eles estão um pouco travados”, acrescenta Christiane Gilon, outra professora do Paris 8.
*A equipe do Agência Brasil viajou a convite da Embaixada da França no Brasil.
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