À primeira vista, a ficção “Sons de ferrugem e ecos de borboletas” parece apenas uma história de amor. Lançado pela Thomas Nelson (selo HarperCollins), o livro de Noemi Nicoletti acompanha Liesel, uma adolescente disposta a tudo para conhecer Leo Adrian, um ídolo pop australiano em turnê pelo Brasil.
Nada, porém, sai como ela esperava. Liesel acaba se aproximando de Jay Buttlerfly, rapper inglês que abre shows de Adrian. No dia de folga, Jay passeia com Liesel por Santos, cidade onde ela mora e… Já dá para imaginar o que acontece, né?
O rapper branco (e virgem) diz que pode ajudá-la a “encontrar o amor verdadeiro”. Ao ver que Lisele se emociona, ele esclarece: estava se referindo ao amor divino. “Estou me jogando nos braços dele, oferecendo toda a minha existência, e ele vem e me fala de… Jesus Cristo?”, reclama.
“Sons de ferrugem e ecos de borboletas” é um exemplo de ficção cristã, tendência literária que explodiu no último ano e já pressiona editoras que antes privilegiavam a teologia a investirem mais em entretenimento.
Prova disso é que a terceira edição da Feira de Ficção e Cultura Cristã (Feficc), que começou na quarta-feira (17) e termina neste sábado (20), levou mais de 20 editoras à Universidade Presbiteriana Mackenzie, em São Paulo. No ano passado, a Feficc ainda foi realizada em Belo Horizonte e apenas duas editoras participaram. Em 2022, existiam apenas autores independentes.
Segundo a Nielsen BookScan, a participação dos títulos cristãos no mercado editorial brasileiro saltou de 1,6% em 2019 para 3,3% em 2023. Só Thomas Nelson publicará 11 ficções cristãs em 2024. Mundo Christiano fechará o ano com dez títulos e estimativas de vender 190 mil livros até dezembro. O editor Daniel Faria diz que “todo dia chega um original novo” e elogia o “profissionalismo das autoras” (sim, as mulheres são maioria na cena), que se promovem e escrevem com base nos “dilemas brasileiros”.
Amor pelos outros, perdão e esperança
A ficção cristã não é evangelística, ou seja, não tem a missão de converter ninguém (embora este seja o clímax de alguns livros). Publicados principalmente por autores e editoras evangélicas (mas não só: a Record publica a ficcionista cristã Francine Rivers), estes livros pretendem entreter o leitor com uma narrativa que transmita valores cristãos (amor ao próximo, perdão, esperança, etc.).
À Globo, Noemi Nicoletti diz que queria apenas escrever uma história romântica, mas não poderia “deixar Deus de fora”.
É difícil rastrear as origens da ficção cristã. Jesus já criou parábolas. O romance “Pilgrim’s Progress”, de John Bunyan, que é uma alegoria da vida cristã, foi publicado em 1678. Clássicos da literatura em inglês que têm certa vocação moralizante, como “Great Expectations”, de Charles Dickens, e “Little Women”, de Louisa May Alcott, são consideradas pioneiras da ficção cristã.
Fantasias como “O Senhor dos Anéis”, de JRR Tolkien, e “As Crônicas de Nárnia”, de CS Lewis, entram na lista, pela fé de seus autores e pela presença de alegorias (o leão Aslan, de “ Nárnia”, representa Cristo).
Diretor editorial da HarperCollins, Samuel Coto explica que a ficção cristã se popularizou nos EUA nos anos 2000, na esteira da série de sucesso “Deixados para Trás”, que virou filme e se apresentou quase como uma tentativa de prever o fim do mundo segundo com teologias fundamentalistas.
Porém, a ficção cristã que se desenvolveu a partir de então abandonou a pretensão de doutrinar o público e focou no entretenimento. Coto também atribui o sucesso ao desejo do leitor protestante de se ver na literatura.
Essa representação vai desde cenas ambientadas em igrejas (onde às vezes os pombinhos se encontram) até diálogos repletos de “crentes”. “Não queria conhecer aquele fazedor de mistérios ou aquele pintado com ouro puro de Ofir”, diz o narrador de “Quinze minutos para o pôr do sol”, de Isabela Freixo, que Mundo Christiano lança em setembro. Na Bíblia, “ouro de Ofir” é um símbolo do que é raro, como a sabedoria.
Em “Meu sol de primavera”, de Queren Ane, a mãe da protagonista Chér a chama de “princesa do Senhor” e “filha do Rei Altíssimo” para consolá-la após uma decepção amorosa — e ensiná-la a orar pedindo a Deus que ele guarde o seu coração das “paixões alegres”.
Chér é uma adolescente comum: ouve Taylor Swift, é viciada em celular e usa-o para domar os cachos. E sim, ela é evangélica.
Sem doutrinação
Queren Ane é uma das autoras de “Corajosas” (Mundo Cristão), livro que traz releituras de contos de fadas, já vendeu mais de 60 mil exemplares e teve continuidade.
— Meu propósito é escrever ficção que seja criativa, emocionante e que traga temas universais a partir de uma perspectiva cristã, mas sem forçar a doutrina goela abaixo do leitor — afirma.
A ficção cristã abrange diversos gêneros: pode ser histórica, apocalíptica, fantástica, juvenil, romântica… Ou inspirada em dramas (séries asiáticas), como “Quinze minutos para o pôr do sol”. Simplesmente não pode haver uma cena de sexo.
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Para Sara Gusella, esses livros aproximam o público evangélico da ficção —os mais conservadores resistem à fantasia, principalmente se houver bruxaria ou outros deuses na história. Esse é o gênero que Sara gosta. Ela é autora de “A Escolha do Verão” (Thomas Nelson), uma fantasia ambientada em uma vila que só conheceu o calor, mas é dominada pelo inverno. Até que Beor decide ir atrás do verão e se sacrificar pelos amigos (como Jesus fez).
— A ficção cristã educa o público, mostra que a fantasia pode contar histórias significativas e não vem do diabo. GK Chesterton (autor inglês) disse que as crianças não deveriam ler histórias de dragões para pensar que os dragões existem, mas para saber que eles podem ser derrotados. Os dragões não existem, mas o mal sim. Por isso, nossas histórias pregam que a bondade e o perdão valem mais do que a vingança — afirma o idealizador da Feira de Ficção e Cultura Cristã.
O boom da ficção cristã reflete o aumento da produção cultural dirigida aos evangélicos, que já representam um terço da população. No setor audiovisual surgem cada vez mais obras que, sem nenhum compromisso proselitista, dão um aceno ao segmento, desde filmes como “No tempo da fé” (disponível na Netflix) até a novela “Vai na fé”, exibido no ano passado na TV Globo.
O antropólogo Juliano Spyer, autor de “Povo de Deus” (Geração Editorial), cita a série americana “The Chosen” (Globoplay e Netflix), que retrata a vida de Jesus, como a produção que melhor soube apresentar conteúdos atrativos aos evangélicos sem doutrinação e sem comprometer a qualidade artística.
Resta saber se essas produções, na literatura e no audiovisual, conseguirão furar a bolha protestante, como fez a música gospel.
— A música gospel não exige credenciais, não precisa ser evangélico para ouvir. Os brasileiros populares se interessam por Deus, e o que importa para eles é se a música faz bem para eles — ressalta Spyer.
A escritora Noemi Nicoletti acredita que a ficção cristã pode criar uma ponte entre aqueles que acreditam e aqueles que não acreditam. Ela admite que às vezes é “tentador” escrever um “sermão disfarçado” em que os cristãos são heróis e os não-crentes são vilões, “porque é a isso que o público evangélico está acostumado”.
— Nessas horas, acho que a narrativa tem valor em si, é mais do que um meio de transmissão de doutrina. Mas você não pode deixar Deus de fora. Seria como escrever sobre uma história em que a gravidade não existe — diz ela.
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