Documento assinado por 37 pesquisadores, inclusive dos EUA e da Europa, é um dos motivos que levou a liderança do governo federal a rever a autorização anunciada durante a visita do presidente
Após anunciar que os demorados estudos de impacto ambiental (EIA Rima) não seriam necessários para autorizar a dragagem do chamado trecho sul do rio Paraguai, o Ibama recuou e agora bloqueia o início das obras. E, segundo a superintendente estadual do Instituto, Joanice Lube Battilani, a conclusão dos estudos agora exigidos levará pelo menos dois anos.
No dia da visita do presidente Lula a Corumbá, 31 de julho, o presidente do Ibama, Rodrigo Antonio de Agostinho Mendonça, que estava na comitiva, informou ao secretário estadual do Meio Ambiente, Jaime Verruck, que não haveria necessidade de EIA Rima porque se tratava de uma dragagem de manutenção de calado, o que, segundo ele, é algo diferente da dragagem convencional.
A partir dessa informação, a superintendência estadual do Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes (DNIT), responsável pela hidrovia, já se preparava para iniciar as obras.
Segundo o DNIT, no chamado Trecho Sul, entre Corumbá e Porto Murtinho, foram identificadas “18 etapas críticas e 15 etapas potencialmente críticas” que necessitam de intervenção. E a melhor época para fazer esse trabalho seria agora, no período de seca.
Nesta segunda-feira, o nível do rio na régua do Ladário amanheceu 27 centímetros abaixo de zero. A tendência é que ultrapasse nas próximas semanas o menor nível registrado em 124 anos, o que ocorreu em 1964, quando atingiu 61 centímetros abaixo de zero. Em 2021, chegou perto desse recorde, voltando a subir após atingir 60 centímetros abaixo de zero. As medições começaram em 1900.
A CARTA
Porém, segundo Joanice Battilani, a equipe técnica do Ibama entendeu que apesar da dragagem ser em uma hidrovia que existe há séculos, há necessidade de estudos de impacto ambiental mais aprofundados e por isso até o presidente do Instituto teve que submeter-se à decisão desses técnicos.
“A menos que as ordens venham de cima, da alta administração, envolvendo outros ministérios, o que vale agora é a decisão da Coordenadoria de Recursos Hídricos do Ibama, lá em Brasília. O DNIT terá que fazer esses estudos extensos e isso não deve acontecer em menos de dois anos”, explica Joanice, que é funcionária de carreira do Ibama e está à frente da superintendência desde o início de 2023.
Joanice acredita que a liderança do Ibama e de outros órgãos de Brasília mudou de ideia depois que 37 pesquisadores, pelo menos 34 com doutorado, assinaram uma carta endereçada ao presidente Lula, aos governadores de MS e MT, além dos ministros do Meio Ambiente, transportes e portos, desaconselhando a dragagem num período de seca extrema, que afecta todo o continente.
Além de ser assinada por pesquisadores e ambientalistas de diversos estados brasileiros, a carta conta com o apoio de médicos dos Estados Unidos, da França, da Inglaterra e de pelo menos dois representantes da UNESCO.
“A nossa preocupação, como especialistas em climatologia, hidrologia, geomorfologia e ecologia da região, deve-se ao facto de se prever que 2024 seja um ano de seca excepcional, nunca antes vista, e dos impactos das dragagens, mesmo que apenas de manutenção, planeadas para que o canal natural do Rio Paraguai se tornasse imprevisível. Estão previstas dragagens com recursos do Novo PAC no trecho superior – Trecho Norte do Rio Paraguai, com cerca de 700 km de extensão, em 27 pontos considerados críticos para a navegação, bem como no trecho inferior – Trecho Sul, com cerca de 1.000 km de extensão. km, com previsão de cerca de 5 e até 30 pontos de dragagem, dependendo da fonte de informação”, diz trecho do documento datado de 27 de agosto. (Veja carta completa)
Clique aqui para ler a carta aberta na íntegra
Parte da carta endereçada às autoridades se baseia em reportagens do Correio do Estado informando que o presidente do Ibama havia autorizado a dragagem e que havia um plano do DNIT para tornar a hidrovia navegável durante todo o ano após essas intervenções chamadas de manutenção. do rascunho.
Outra reportagem do Correio do Estado citada na carta é a que informa sobre os planos de privatização da hidrovia.
REMANUSEIO
Ao contrário do que se possa imaginar, dragagem de manutenção não significa retirar areia do leito. Segundo o DNIT, “a dragagem de manutenção promove um novo arranjo do leito, retirando sedimentos de canal natural identificado e depositando-os dentro do próprio rio, em ponto que não ofereça riscos à navegação”.
Essa metodologia de trabalho, explica a superintendência, “visa não reduzir a altura da lâmina d’água, o que faz com que a dragagem de manutenção não interfira no ciclo de transbordamento do rio”, conforme nota enviada pelo DNIT em agosto.
A estimativa do DNIT é que as obras emergenciais de dragagem durariam seis meses, mas mesmo depois disso, explicou a superintendência, seriam necessárias obras permanentes de manutenção do calado.
EXPORTAÇÕES
Os principais interessados na dragagem do Rio Paraguai são os exportadores de minério de Corumbá. E o principal exportador é o grupo J&F, dos irmãos Joesley e Wesley Batista. Desde abril de 2022, após desembolsar US$ 1,2 bilhão, os irmãos Batista controlam as minas de minério de ferro e manganês que pertenciam à Vale em Corumbá.
Devido à falta de chuvas desde outubro do ano passado, o rio Paraguai demorou a subir no início do ano e caiu abaixo de um metro no final de junho. Com isso, o volume transportado pela hidrovia despencou quase 50% no primeiro semestre.
Nos primeiros seis meses do ano passado, segundo dados da Agência Nacional de Transportes Aquaviários (Antaq), foram transportadas 4,51 milhões de toneladas ao longo do rio Paraguai. No mesmo período deste ano, o volume caiu para 2,28 milhões de toneladas.
E ao mesmo tempo em que o DNIT prepara a dragagem, a Agência Nacional de Transportes Aquaviários (ANTAQ) desenvolve estudos para “privatizar” a hidrovia, tirando do DNIT a responsabilidade pela manutenção.
Após esta concessão, prevista para ocorrer até ao final do próximo ano, as empresas que transportam minerais, combustíveis, cereais e fertilizantes terão de pagar portagens. Os barcos que transportam turistas ficarão isentos dessas taxas, segundo a Antaq.
Em meados de agosto, o governador Eduardo Riedel, acompanhado do comando da Antaq, visitou o Uruguai para acompanhar de perto os trabalhos de remanejamento, no país vizinho, do minério que desce pela hidrovia em pequenas barcaças para navios de maior porte.
A visita ocorreu em meio aos preparativos da dragagem que, em tese, transformariam a hidrovia em navegável o ano todo. Agora, porém, esse cenário está descartado, pelo menos nos próximos dois anos.
Em média, a hidrovia é navegável durante sete ou oito meses por ano. Em 2024, devido à seca, o transporte de cargas ficou limitado a pouco mais de quatro meses, e mesmo assim a meia carga.
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