Povos originários representam 15% do total de alunos da Universidade Federal da Grande Dourados
No Mato Grosso do Sul, uma instituição federal tem sido um pólo de encontros entre culturas, já que os povos indígenas somam 800 alunos matriculados atualmente na Universidade Federal da Grande Dourados (UFGD), cerca de 15% do total de alunos.
Sônia Pavão não precisa se deslocar até a cidade ou ligar para uma farmácia quando precisa de algum remédio, basta dar alguns passos e chegar até a mata ao redor de sua casa para pegar os remédios que precisa.
“Esta é a minha farmácia”, explica ela, ao mostrar as espécies vegetais do cerrado e seus usos medicinais tradicionais.
Anos de conhecimento acumulado, aprendidos com os professores de seu povo, os Guaranis (nhandevas e kaiowás) de Mato Grosso do Sul da reserva indígena Tapyi Kora, oficialmente conhecida como Limão Verde, formam a farmácia usada para curar as mais diversas doenças, de o corpo e o espírito.
Não teve uma infância fácil, ficando órfã aos 4 anos, após o assassinato dos pais, mas a fatalidade não impediu a obstinação de Sônia em aprender e concluir as diversas etapas do ensino formal e se formar em ciências naturais, pela Faculdade Intercultural Indígena (Faind) da Universidade Federal da Grande Dourados (UFGD).
E foi na própria Faind/UFGD que Sônia decidiu aliar seus conhecimentos tradicionais à pesquisa acadêmica. O resultado foi um mestrado em que falou sobre os saberes tradicionais Guarani e Kaiowá, como fontes de autonomia, sustentabilidade e resistência.
“Essa experiência, essa prática, que estava isolada nas nossas comunidades, agora está saindo, está dentro da universidade”, diz Sônia, à sombra de uma das dezenas de árvores plantadas em seu jardim.
Basta uma caminhada pelo campus principal da Universidade Federal da Grande Dourados (UFGD) para perceber que esta não é uma instituição de ensino superior qualquer. O primeiro sinal de que algo está diferente é uma imensa construção feita inteiramente de troncos de madeira e palha.
Banners e cartazes escritos em uma linguagem incompreensível para a maioria dos brasileiros são outro sinal. Talvez, se você prestar atenção nas conversas entre os alunos, perceberá que essa mesma linguagem está sendo utilizada no diálogo.
Você terá certeza de que a UFGD é uma instituição única ao ler a sigla Faind, na entrada de um dos blocos. Trata-se da Faculdade Intercultural Indígena, unidade voltada especialmente para o ensino e a pesquisa de assuntos relacionados aos povos indígenas brasileiros.
Lá o corpo discente é formado principalmente por etnias indígenas mato-grossenses, que somam mais de 116 mil pessoas, pouco mais de 4% da população total do estado.
A língua incompreensível para a maioria dos brasileiros é o guarani, falado pelas etnias Kaiowá e Nhandeva, que, junto com os Terenas, são o povo que tradicionalmente habita a região de Dourados. A imensa construção de palha é uma Oga Pysy, tradicional Casa de Oração Guarani.
Um dos cursos da Faind se chama teko arandu, em língua guarani, que pode ser traduzido como “viver com sabedoria”, que é uma graduação intercultural voltada para a formação de professores indígenas.
A licenciatura teko arandu, que este ano completa 18 anos, foi a génese da criação da Faind, que oferece também uma licenciatura em “educação rural” e um programa de pós-graduação em “educação e territorialidades”.
Neste semestre já está em andamento o processo seletivo para um novo curso de graduação: “pedagogia intercultural indígena”.
Mas os indígenas não estão restritos aos cursos da Faind. Eles se espalham por cursos e programas de pós-graduação de outras unidades da UFGD e já somam 800 alunos, ou seja, cerca de 15% dos quase 6 mil matriculados na universidade federal. A própria Sônia cursa doutorado no programa de pós-graduação em geografia.
Troca de conhecimento
Para o reitor da UFGD, Jones Goettert, a presença de estudantes e pesquisadores indígenas é enriquecedora para a universidade e faz a própria academia refletir sobre a relação entre ciência e outros saberes.
“O conhecimento Guarani, Kaiowá e Terena é um conhecimento próximo, mas também distante do nosso. Precisamos fazer com que esse conhecimento desmantele o nosso. E essa desmontagem ocorre quando aprendemos conceitos, temas e palavras para fazer com que a nossa ciência participe desses outros conceitos”, afirma Goettert.
A Faind, por exemplo, já busca adequar seu calendário acadêmico e instalações à realidade de seus alunos.
Os cursos da unidade são oferecidos na modalidade “pedagogia da alternância”, em que parte do tempo os alunos, em grande parte oriundos de vilas distantes da universidade, assistem às aulas no campus da UFGD e parte do tempo os professores viajam para os territórios dos alunos.
Nos períodos em que estão no campus, os estudantes que moram longe podem se hospedar em alojamentos universitários e até levar a família para ficar com eles, algo que é importante para as mães Guarani, que precisam estar acompanhadas dos filhos.
Enquanto as mães assistem às aulas, as crianças passam o tempo em uma brinquedoteca, sob a supervisão de uma funcionária também indígena.
Além disso, os grupos étnicos têm o direito de convidar “oradores” (comumente conhecidos como xamãs) para administrar rituais religiosos no Oga Pysy localizado dentro do campus.
“A universidade se torna para nós uma segunda casa de oração. Hoje temos muitos detentores do conhecimento Guarani Kaiowá dentro da universidade e professores [da universidade] ter acesso ao nosso conhecimento”, destaca Sônia.
Viagem
Este ano, três doutorandos indígenas da UFGD foram selecionados para um intercâmbio de seis meses na França. Estudantes indígenas de 11 universidades brasileiras concorreram a bolsas do programa Guatá, da Embaixada da França no Brasil, e a UFGD teve três dos oito selecionados.
A Universidade de Dourados foi a instituição com maior número de alunos aprovados no programa, seguida pela Universidade de São Paulo (USP) e pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), ambas com dois alunos, e pela Universidade de Brasília (UnB). ), com um .
“Isso permite que esses estudantes indígenas tenham experiências fora do Brasil que dificilmente teriam de outra forma.
Além disso, estar no exterior dá visibilidade ao estudante indígena e ele também leva consigo a historicidade coletiva daquele povo.
Então é uma oportunidade para aumentar a visibilidade [do povo] e, com isso, legitimar a existência de línguas, de práticas culturais e, claro, também a sua reivindicação de território” explica o professor Matheus de Carvalho Hernandez, coordenador da Diretoria de Assuntos Internacionais da UFGD.
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