O juiz Júlio Roberto Siqueira Cardoso, mais conhecido pela abreviatura de seu nome: Júlio Siqueira, aposentou-se na semana passada após 40 anos de serviço no Poder Judiciário de Mato Grosso do Sul. Tendo atuado nos bairros de Dourados, Aparecida do Taboado, Paranaíba e Campo Grande, Siqueira deixou milhares de amigos e conquistou o respeito da maioria de suas jurisdições.
Em entrevista ao Correio do Estado, o juiz, já aposentado, fala sobre seus planos para o período de aposentadoria, relembra como veio para Mato Grosso do Sul e fala sobre seu amor pelo Estado. Ele também dá dicas para magistrados e profissionais do direito: “É importante fazer parte da sociedade para saber julgar (…) Não pode ser só no computador, porque lá você não vê nada”.
Na nossa opinião, um dos legados que você deixa para o judiciário é a sua aproximação com o povo, com aqueles que estão sob sua jurisdição, e não apenas com advogados, promotores e colegas juízes. Como você vê a relação entre os juízes e aqueles que estão sob sua jurisdição hoje?
O grande problema do judiciário é o sangue azul. Seu cara se tornou juiz, ele se tornou rei. É o soberano direto de Orleans e Bragança. Mas é aí que mora o erro de muitos magistrados: se ele entrou no Judiciário, tem que saber que entrou para servir. Sempre tive o seguinte na escola do meu pai: acordar cedo para trabalhar mais, e você será mais reconhecido por isso. Então, quando cheguei, comecei a trabalhar às 7h e acabei ganhando muito dinheiro.
Você se despede de sua efetiva atuação como magistrado após 40 anos de experiência, conte-nos como foi quando chegou ao Mato Grosso do Sul?
Sou de Mogi das Cruzes, me formei advogado em 1972. Meu pai tinha negócios lá em Mogi e São Paulo, e eu me tornei advogado da empresa dele. E durante 9 anos fui funcionário deles, ou seja, sócio. E eu estava numa fase da vida ideal para fazer uma transição, para, quem sabe, mudar de cidade. E na época, quando eu viajava todos os dias para São Paulo, um vizinho meu, que era uma pessoa meio fechada, e aparentemente só tinha amigos comigo lá em Mogi, sempre conversava comigo, e uma vez ele me disse: você precisa ser juiz. E você tem que ser juiz, não em São Paulo, se eu fosse você iria para um novo estado, começaria minha vida em outro lugar. Muito bom! Depois fui para o curso do Damásio, em São Paulo, que na época era um ótimo curso preparatório. Em outubro de 1983 fiz dois exames: um para Santa Catarina e outro para Mato Grosso do Sul, e Deus quis que eu passasse nos dois.
Fui visitar Santa Catarina. Fui lá na época, fiquei 10 dias. Teve até um bairro: São José, próximo à Capital. Mas Mato Grosso do Sul ainda estava desaparecido. Bom, eu vim de carro e aí quando passou Presidente Epitácio (SP) o asfalto acabou. E foi então que eu e minha família chegamos em Dourados. E o que ajudou foi que minha esposa já tinha dois amigos que já moravam na cidade, o que ajudou muito na adaptação.
Na época, eu até esperava pelo bairro Itaporã, mas acabei sendo preterido. Depois veio a promoção de Aparecida do Taboado, que até então eu só conhecia pela música. E fui conhecer a cidade e gostei. Depois fui para Paranaíba. Meus filhos cresceram lá e eu passei momentos memoráveis lá.
E depois de 40 anos, você acha que fez a escolha certa?
O mais importante é o amor que cultivei pelo Estado nestes 40 anos. Esse Estado colocou comida na minha mesa durante todo esse período, me deu a oportunidade de criar três filhos, de construir minha família, e sempre fui muito reconhecido pelo Estado de Mato Grosso do Sul. Então hoje posso te dizer que eu deixei de ser paulista sim. No dia em que fui reconhecido com o título de “Cidadão Sul-Mato-Grossense” pela Assembleia Legislativa, nesse mesmo dia fui à Secretaria de Segurança Pública, tirei uma nova carteira de identidade (Carteira de Identidade) e esqueci meu São Paulo Carteira de identidade. Paulo. Tornei-me natural de Mato Grosso do Sul. Deste livro de 75 páginas que é a minha vida até agora, 40 páginas foram escritas aqui.
Esse estado me fez gostar de sertanejo, buchada, rabada. Aqui aprendi muito. E na época que estive lá havia quem achasse que trocar São Paulo por Mato Grosso do Sul seria um jogo ruim, e hoje eu digo, por quê? Nestes 40 anos, todos os governadores do Estado vieram me visitar, tanto em Campo Grande, como em Aparecida do Taboado, em Dourados e em Paranaíba. Quando, quando eu estivesse em São Paulo, receberia a visita de um deputado estadual? Nunca.
E conte-nos sobre Campo Grande, em que ano você foi transferido para cá?
Fui transferido em 1995 e em 2009 fui promovido a juiz. Mas especificamente em relação ao júri, que foi onde trabalhei em primeira instância na Capital, foi um grande desafio. Nunca havia exercido a advocacia criminal, não tinha afinidade. Mas as promoções eram baseadas no que estava abrindo, então quando surgiu a minha oportunidade de vir para Campo Grande, perguntei: o que tem aí? Júri, 1ª Vara. A princípio pensei que não, mas depois refleti e voltei a fazer a pergunta: “mas como não?”. Então eu vim para cá, tomei posse, e antes de tomar posse, voei para São Paulo, passei 15 dias no Tribunal do Júri de lá. Depois, mais 15 dias no Tribunal do Júri do Rio de Janeiro, e aí, quando assumi, já era o “Leão do Júri”. Digo isso porque tive que lidar com advogados criminais muito bons. Integrei o júri por 18 anos, a ponto de atuar no maior número de júris por aqui. Então o júri foi algo maravilhoso para mim. E veja como estão as coisas. Eu gostei do júri, de Direito Penal, por uma necessidade que eu tinha, me especializei nisso, mas nesse período fui professor de Direito Penal por 12 anos.
E como foi sua carreira como juiz?
Também é diferente. No primeiro grau, o juiz do interior vê o rosto do cidadão. Você vê quem está querendo despejar, eu vejo a outra parte supostamente inadimplente. Acabo “sentindo” a prova. Podemos dizer se é um golpista ou alguém em dificuldade. Não aqui no ensino médio. Não vemos as peças. O que vejo é a sentença que foi proferida em primeiro grau.
Portanto, o que julgamos aqui é a forma como o juiz de primeira instância julgou e verificamos se ele analisou criteriosamente as provas que lhe foram apresentadas. Porque se o juiz de primeira instância errou, o tribunal foi feito para isso: para consertar erros. E olha: consertamos muitos deles. Eu compenso, o papel é menos estressante no sentido de que a gente tem hora de entrar e sair, não tem audiência. Mas quanto ao controle, deve-se ter muito cuidado. Se o juiz não controlar seu acervo (estoque de processos a serem julgados), ele sucumbe. Me controlei desde o primeiro dia que cheguei e meu objetivo é que minha coleção seja sempre a mais baixa.
E como será o Dr. Júlio pós-aposentadoria, você será advogado?
Nestes 40 anos, estive todos os dias na minha unidade judiciária. Claro, além dos feriados. Mas por que? Porque é aqui que leio o jornal, onde descubro, onde encontro pessoas. A casa está com a família. Então é claro que é disso que vou sentir falta, de acordar e vir aqui. Então, como vou acordar de manhã e não vou poder vir aqui, vou montar um escritório, então – pelo menos – nesses dois primeiros anos depois da minha aposentadoria, eu tenho um lugar para ficar. Tenho um filho que é advogado, o Paulo Fernando, atual presidente da Agetec, e que não advogou no mercado enquanto era juiz. E agora que não julgo mais, vou voltar para o escritório e vou pedir para ele vir comigo.
Ao mesmo tempo, entendo que a vida é feita de ciclos. Foi bom enquanto durou, e é o que digo a todo mundo do interior quando tem que mudar de cidade.
Como você vê o Judiciário hoje em dia, em meio à sua aposentadoria como juiz?
As pessoas contam decisões de segundo grau. Dei mais de 60 mil nesses 20 anos como juiz, mas julguei mais de 100 mil processos. Portanto, não podemos esquecer que sempre no centro dos 100 mil casos estão os 50 mil que tiveram decisões favoráveis e os 50 mil que perderam. Poderia ter havido alguma injustiça? Isso depende muito do partido e é muito subjetivo, mas estou muito tranquilo e com a consciência muito tranquila.
E quais são algumas lições e experiências que você deixa para os profissionais do direito e magistrados que estão trabalhando ou começando?
A primeira lição é a celeridade na provisão judicial. Você tem que fornecer satisfação judicial pelo conflito que está ocorrendo. Isso é fundamental: tentar entender as partes, de boa vontade, você tem que saber o que A está falando, o que B está falando, para poder ter humanidade nas suas decisões, entendeu? Podemos até cometer erros, mas seria muito mais difícil se eu não falasse com ninguém, se apenas ficasse por dentro do processo em si. Outra coisa: é importante fazer parte da sociedade, saber julgar. Um juiz hoje que manda para a cadeia um garoto que roubou duas melancias ou duas fofocas é um juiz que está fora da realidade. Porque, o que não se podia fazer em 1959, hoje há fome e não causa grandes danos ao património do outro.
O juiz tem que estar atualizado, estar atento, vendo. Não pode estar apenas em um computador, porque você não consegue ver nada lá.
Perfil
Júlio Roberto Siqueira Cardoso
Júlio Siqueira formou-se em direito em 1972. Tomou posse como juiz substituto do Tribunal de Justiça de Mato Grosso do Sul em dezembro de 1984, na comarca de Dourados. Nesta função atuou em Fátima do Sul, Maracaju e Glória de Dourados. Em 1985 assumiu o cargo de juiz de Aparecida do Taboado, em 1987 foi promovido para Paranaíba, e em 1995, para a 1ª Vara do Tribunal do Júri de Campo Grande. Em 2009, foi promovido a juiz.
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