O governo federal assinou, nesta quinta-feira (19), um acordo de conciliação com as comunidades quilombolas do município de Alcântara, no Maranhão, encerrando uma disputa de 40 anos pela área do entorno do Centro de Lançamento de Alcântara (CLA), da Força Aérea Brasileira (FAB). Em cerimônia na cidade do Maranhão, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva também assinou o Decreto de Interesse Social do território quilombola, passo fundamental para a titulação da área.
“A história do povo de Alcântara vai mudar”, disse Lula, destacando a importância dos atos para o acesso da população aos benefícios sociais e aos serviços públicos básicos, como saúde, educação e acesso à água.
“Por que, para construir uma base de lançamento de foguetes, teve que ser tanto desapropriado? Por que os pescadores estavam se incomodando? Porquê deixar as pessoas que vivem da pesca sem acesso ao mar? Por que proibir você de acessar os benefícios que o próprio governo pode oferecer? Por que você foi quase marginalizado?”, questionou o presidente.
“Agora você pode se olhar no espelho, com toda a família, e dizer ‘somos mais uma vez cidadãos de primeira linha deste país, temos direitos e vamos exigi-los’”, enfatizou Lula.
O presidente afirmou que o Estado tem obrigações e que o governo federal quer trabalhar em conjunto com a prefeitura de Alcântara, com o governo do estado e com as casas legislativas das três esferas para, “com muita urgência, recuperar o tempo perdido” .
O acordo assinado concilia os interesses e direitos territoriais das comunidades quilombolas com os interesses e necessidades da União na promoção e desenvolvimento do Programa Espacial Brasileiro e na consolidação do CLA. No acordo, o governo federal se comprometeu a criar a Empresa Brasileira de Projetos Aeroespaciais (Alada), para receber investimentos nesse setor estratégico.
O procurador-geral da União, Jorge Messias, que liderou o processo de conciliação, lembrou que, uma vez reconhecida a área, as comunidades poderão fazer uso produtivo da terra, ter acesso a benefícios, como crédito rural, e programas como o Minha Casa, Minha Vida (MCMV). Anteriormente, em visita à comunidade quilombola de MamunaLula se comprometeu a atender às demandas locais.
“Ser advogado é fazer justiça e é isso que estamos fazendo aqui hoje. Como é que pessoas assim podem ter tanta terra, tanto mar e não podem pescar e produzir porque não têm terra?” perguntou Messias.
“O acordo só dá os alicerces da casa, precisamos fazer as paredes, o telhado, o que significa levar posto de saúde, escola, MCMV para essas pessoas. Mas só poderíamos trazer tudo isso depois do decreto”, disse o procurador-geral da União.
Messias agradeceu ao Ministério da Defesa e ao comando da FAB pela parceria na construção do acordo. Segundo ele, é desejo do comandante da Aeronáutica, Marcelo Damasceno, que os quilombolas tenham oportunidades de emprego na nova empresa, a Alada.
O ministro do Desenvolvimento Agrário e da Agricultura Familiar, Paulo Teixeira, também afirmou que, a partir de agora, os quilombolas de Alcântara têm direito a acessar recursos do Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar (Pronaf) e participar dos programas de aquisição de alimentos do governo federal e alimentação nas escolas.
“Aqui é uma entrega para Alcântara, mas também é uma entrega para os quilombos do Brasil”, disse.
Durante o evento, Lula também entregou 21 títulos de domínio a comunidades quilombolas de todo o Brasil e assinou 11 decretos de interesse social. “As entregas representam a garantia de direitos a 4,5 mil famílias, com a destinação de mais de 120 mil hectares a 19 comunidades em nove estados”, informou a Presidência.
Resistência
Alcântara é o município com maior proporção de população quilombola do país, com 84,6% de moradores autodeclarados. O Território Quilombola de Alcântara possui 152 comunidades, com cerca de 3.350 famílias, e foi ocupado por populações negras escravizadas a partir do século XVIII.
A líder da Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas Maria Socorro Nascimento relembrou a resistência quilombola ao longo dos anos e a relação dos povos quilombolas com a terra.
“É uma grande honra para nós poder receber este título para podermos viver. Para nós, quilombolas, a terra é um bem imensurável. O que temos disso é propriedade e precisamos que nosso direito seja respeitado”, afirmou o líder quilombola.
“Trouxeram os nossos antepassados escravizados e quando falo aqui de Alcântara como local de nascimento é porque foram os nossos antepassados que colocaram as pedras nestas ruas”, continuou Maria, que pediu ao público que repetisse os slogans: “Resistência quilombola: nenhum quilombo para menos!”.
O presidente do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Alcântara, Aniceto Araújo Pereira, disse que o momento sela 40 anos de luta pelo direito à terra. “Não basta assinar o decreto e deixá-lo escondido na estante. Precisa assinar o decreto, mas precisa preencher o título”, pontuou.
Durante sua fala, Pereira mencionou algumas comunidades quilombolas de Alcântara, como Canelatiua, Areia, Manuma, Brito, Tapera, Retiro e Ponta de Areia, localizadas no litoral, e que sofriam de difícil acesso devido à disputa pela terra como espaço base. de Alcântara.
“As comunidades de Alcântara são comunidades simples, trabalhadoras, e precisamos que desenvolvamos a questão da pesca”, disse o quilombola, exigindo melhorias na educação, na saúde, na construção de estradas para ligar as comunidades e também conectá-las ao área urbana do município. “Precisamos de qualidade e qualificação profissional e, para isso, precisamos de melhorar a educação desde a pré-escola até à formação profissional”, exigiu.
A ministra da Igualdade Racial, Anielle Franco, disse que a cerimônia de assinatura do acordo com as comunidades quilombolas foi resultado de um trabalho iniciado desde o início do governo Lula. Para ela, mais do que o caminho para a titulação de terras, a conciliação representa “trazer sonhos, trazer dignidade de vida” para a população quilombola.
“Estou muito feliz e entusiasmado, o que tenho em termos de idade é o que este conflito tem também em termos de tempo. Já são 40 anos que batalhamos e lutamos para ter dignidade e manter a resistência, a redefinição desse lugar. Mas todas as organizações, todos os envolvidos nestes espaços aqui sabem que estamos comprometidos com o projeto político do país, que proporciona momentos como este”, disse Anielle.
Conflito histórico
O Acordo de Conciliação, Compromissos e Reconhecimento Recíproco, relativo ao Acordo de Alcântara, põe fim a um conflito histórico. O CLA foi construído na década de 1980 pela FAB como base para lançamento de foguetes. O local foi escolhido por ser considerado vantajoso para operações dessa natureza, devido à proximidade com a Linha do Equador, mas, para viabilizar o trabalho, 312 famílias quilombolas, de 32 aldeias, foram retiradas do local e reassentadas em aldeias agrícolas em regiões próximas. Mesmo assim, a titulação das terras nunca foi realizada e as comunidades sofreram com a insegurança jurídica e a constante ameaça de expulsão para expandir a base.
O processo de regularização de terras quilombolas é composto por quatro grandes fases: a publicação do Relatório Técnico de Identificação e Delimitação (RTID), a Portaria de Reconhecimento, o Decreto de Interesse Social e o Título de Domínio.
Em 2004, a Fundação Palmares certificou o território como quilombola. Em 2008, o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) publicou o RTID identificando a área de 78.105 hectares como território tradicionalmente ocupado.
Mesmo assim, a FAB planejou ampliar o território da base de 8,7 mil hectares para 21,3 mil hectares, avançando sobre comunidades do litoral maranhense. Após a publicação do relatório, o Ministério da Defesa manifestou a existência de interesses no Programa Espacial Brasileiro.
No ano passado, o governo brasileiro reconheceu a violação dos direitos de propriedade e proteção legal das comunidades quilombolas, durante a construção da base, e pediu desculpas oficialmente, em meio a um processo na Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) que determinou o título de a área às demais famílias da população negra escravizada.
Acordo
Ainda em 2023, foi criado um grupo de trabalho interministerial (GT) para buscar uma solução para o impasse, coordenado pela Advocacia-Geral da União. O acordo celebrado hoje permite, então, a titulação integral do território quilombola de Alcântara, com área reconhecida no RTID, e consolidação da atual área do Centro de Lançamento de Alcântara.
O Ministério da Defesa, a FAB e o Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovações comprometem-se a não apresentar novos questionamentos a respeito deste tema e a respeitar a destinação da área quilombola feita pela União. As comunidades, por sua vez, representadas pelas suas entidades, estão de acordo com a existência e funcionamento do CLA na área onde está instalado.
Dentro de 12 meses, o Incra iniciará a titulação do território identificado e declarado, concedendo titularidade às áreas que já estão cadastradas em nome da União e, dentro destas, priorizando as áreas limítrofes e localizadas ao norte da área base. lançamentos.
O ministro Jorge Messias destacou a presença no evento de juízes e defensores que irão, a partir de agora, atuar na conciliação nos diversos processos em curso na área. “Com o decreto daremos início ao processo de regularização fundiária e precisamos dessa parceria para que esses títulos possam ser implementados”, disse.
Foi assinado acordo para agilizar a tramitação dessas ações judiciais de desapropriação de territórios quilombolas em Alcântara.
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