Se antes das eleições presidenciais de 28 de julho a Venezuela já enfrentava um dos maiores êxodos populacionais do mundo — com mais de 7,7 milhões de emigrantes, segundo a ONU — a situação poderia piorar ainda mais depois da incerteza e da repressão que se instalaram no país. o país com a contestada reeleição de Nicolás Maduro para um terceiro mandato de seis anos, entre acusações de fraude por parte da oposição e ampla condenação internacional.
Uma nova vaga de migração representaria não só um colapso económico e social, mas também uma grave fuga de cérebros que ameaça a já comprometida produção científica nacional, alertam os investigadores.
O movimento de cientistas saindo do país em busca de melhores condições de trabalho é observado há pelo menos duas décadas, segundo trabalhos publicados sobre o tema.
Durante anos, o sistema universitário e as instituições de investigação enfrentaram graves desafios, como a falta de financiamento, infraestruturas inadequadas e, acima de tudo, baixos salários, que contribuíram para o declínio da produção científica e para uma crescente fuga de cérebros.
Agora, além das condições de trabalho precárias, há uma perda de liberdade acadêmica e de pensamento, relatam os pesquisadores.
Números de maquiagem
Oficialmente, o governo contabiliza 26 mil pesquisadores contribuindo para a produção científica do país, segundo dados da plataforma do Observatório Nacional de Ciência, Tecnologia e Inovação (ONCTI), vinculada ao Ministério da Ciência e Tecnologia.
Mas os números são contestados pelos pesquisadores, e a realidade pode ser um cenário até 20 vezes menor do que o apresentado.
Segundo Jaime Requena, membro da Academia Venezuelana de Ciências Físicas, Matemáticas e Naturais, o número atual não passa de 1.200, com dados atualizados em 2023.
O número é semelhante ao do Ad Scientific Index, plataforma que classifica e avalia o desempenho de cientistas, instituições de ensino superior e de pesquisa de todo o mundo e tem 2,2 mil pesquisadores venezuelanos cadastrados em sua base de dados.
— O governo hoje define qualquer pessoa como pesquisador, independentemente de sua formação, idade ou tipo de trabalho, desde que seja remunerado pelo Ministério da Ciência e Tecnologia. Isso inclui pesquisadores, técnicos, administrativos, secretários, entregadores que transportam documentos de um lugar para outro, pessoas que limpam os laboratórios e cuidam dos animais para pesquisa — explicou Requena ao GLOBO. — Para o resto do planeta, um investigador é definido como uma pessoa que possui um grau de escolaridade, foi formada para realizar investigação e cujos resultados são publicados em revistas reconhecidas como tal.
Aliás, na própria plataforma é possível observar que a distribuição por nível de escolaridade vai desde profissionais com doutoramentos (12,5%), mestrados (16,7%) e licenciaturas (22,5%) até pessoas com ensino básico (1%). . A maior participação está na categoria “outros”, com 26,2%.
A reportagem tentou contato com o ministério para entender como é feita a contagem e quais são os requisitos para cadastro na plataforma, mas não obteve resposta.
Requena, que se mudou para a Espanha com a esposa em 2018 em busca de melhores alternativas de tratamento de saúde, trabalha há mais de 30 anos coletando dados de pesquisas científicas na Venezuela. Seu estudo teve início na década de 1980, com listas de publicações fornecidas pelo Instituto de Informação Científica.
A partir de 2000, passou a realizar a tarefa de forma independente, consultando anualmente o banco de dados e as plataformas online da agência, além de bibliotecas físicas. Hoje, sua base de dados conta com cerca de 80 mil publicações dos séculos XX e XXI, abrangendo entre 90% e 95% de todas as obras já publicadas no país.
É um trabalho detalhado, diz, com cruzamento de nomes de autores, registros e instituições, o que permite evitar duplicidades e alterações nos números finais.
Os artigos são categorizados de acordo com o sistema de classificação internacional da UNESCO, que garante uma análise detalhada das publicações, organizando-as por áreas do conhecimento.
O número de pesquisadores que deixaram a Venezuela — cerca de 3 mil até o final de 2023, o triplo do número que trabalhava no país, segundo o professor — é um fenômeno relativamente recente. Segundo a base de dados de Requena, tudo começou por volta de 2008, durante o governo do antecessor de Maduro, Hugo Chávez (1999-2013).
No início do governo chavista, as instituições venezuelanas tiveram acesso a recursos financeiros que impulsionaram a produção científica, mas esses avanços foram breves e desapareceram alguns anos depois, explica o professor.
— Antes disso, algumas pessoas estavam saindo, mas era apenas a mobilidade normal dos cientistas ao redor do mundo. Era um número muito, muito pequeno. Talvez apenas 100 ou 200 venezuelanos tenham deixado o país no final do século XX. No entanto, o número de pesquisadores na Venezuela voltou ao que tínhamos por volta de 1960-1970 — afirma.
Segundo o professor, a Europa (especialmente Espanha) e os Estados Unidos são os destinos mais comuns para quem emigra, acolhendo 29% e 23% deles, respetivamente. Na América Latina, países como Equador e Colômbia se destacam no acolhimento de pesquisadores.
Essa fuga de cérebros fez com que a produção científica da Venezuela fosse superada nas últimas duas décadas por outros países da América Latina, segundo pesquisa do professor Ismardo Bonalde, do Instituto Venezuelano de Pesquisas Científicas (Ivic).
Entre os 14 países analisados, a Venezuela foi o único, desde 2009, a apresentar taxa negativa de produção científica, caindo do 5º lugar em 2006 para o 11º em 2022, enquanto Brasil (que lidera a lista), México, Argentina, Chile, Colômbia, Peru e Equador registraram crescimentos significativos no mesmo período.
— Esta triste realidade mostra o quão intensa tem sido a diáspora de pesquisadores venezuelanos, o que se reflete na produção científica, que remonta a 25 anos. Atualmente, temos a mesma produção de 1998 — disse ao GLOBO a pesquisadora associada do Ivic, Barbara Montañes, coautora do estudo.
Classificação global
Atualmente, a Venezuela ocupa a 117ª posição mundial na base de dados do Nature Index — que rastreia instituições e países e sua produção científica —, sendo a oitava na América do Sul. No Ad Scientific Index, o país aparece na posição 88 do ranking global, sendo o décimo colocado regionalmente.
Com a repressão que ocorreu no país, espalhou-se o medo de uma nova onda migratória. Uma pesquisa do instituto ORC Consultores, realizada antes das eleições, mostrou que 18% dos venezuelanos já haviam manifestado o desejo de deixar o país dentro de seis meses se Maduro permanecesse no poder.
Apesar disso, Requena acredita que é cedo para dizer se haverá um maior êxodo de investigadores, embora lamente que muitos conhecidos estejam “profundamente preocupados e conscientes de que a vida no país se está a tornar insuportável”.
— Se houver uma mudança de governo, acho que há 95% de probabilidade de eu voltar ao meu país. Tentarei ajudar a economia fazendo o trabalho que costumava fazer. Mas acredito que este não seja o caso da maioria dos cientistas no exterior — diz Requena, reconhecendo que não seria uma tarefa fácil para qualquer gestão atrair profissionais de volta.
Montañes, que mora no campo, tem opinião diferente.
— Muitos de nós do setor científico que ainda permanecemos na Venezuela o fazemos por amor ao país e por paixão pela ciência e com a esperança de que ela não desapareça — afirma. — Mas há uma grande probabilidade de que, se permanecermos com o actual governo, a tendência decrescente na produção de conhecimento continue e a diáspora aumente. No meu caso, não há um investimento adequado na minha área de investigação, o que me faz pensar que, se esta situação se mantiver, é muito provável que eu emigrará.
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