“Na maioria das vezes era eu quem escrevia as cartas.” Natural da comunidade de Realengo, no Rio de Janeiro, Cristiano Silva de Oliveira trabalhava em empresa pública e foi acusado de cometer crime econômico e condenado a 14 anos e 8 meses. Ingressou no sistema prisional aos 33 anos e cursou o ensino médio e hoje, fora dele, concluiu o ensino superior e mantém o curso IAmIque tem duas frentes: uma de facilitar a comunicação entre os presos e suas famílias e outra de educação.
A sua evolução, porém, não é liderada por agentes de segurança nem é resultado da chamada ressocialização ou da indulgência de outra figura semelhante. Pelo contrário, Oliveira terminou a licenciatura porque desafiou o sistema, e fê-lo colectivamente. Este é o objectivo, reduzir a distância entre os presos e a palha de um diploma universitário, que o Rede Global de Acadêmicos da Liberdade será lançado neste sábado (31), na capital paulista.
A iniciativa é da organização Rede das Nações Encarceradas, que conta com o apoio do projeto Nova Rota, criado em 2019 por ex-alunos da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP). Pioneira no Brasil, a iniciativa oferece bolsas de estudo, mentoria e apoio multidisciplinar a pessoas que saem do sistema prisional. Atualmente, 22 alunos estão matriculados em cursos de graduação em São Paulo e no Rio de Janeiro.
Com sua prisão, Oliveira passou a refletir mais criticamente sobre as condições do o sistema prisional do país, o terceiro maior do mundocom mais de 642 mil pessoas no segundo semestre de 2023, das quais 615 mil eram do sexo masculino.
Ainda segundo dados do Ministério da Justiça e Segurança Pública, no período, apenas 8.381 presos tinham ensino superior incompleto e 4.851 tinham ensino superior completo. Uma pequena parcela, de 434 presos, já havia ultrapassado a formatura.
Na época em que Oliveira foi detido, seu encarceramento foi dividido em dois momentos: primeiro, em uma cela da Polícia Civil. Segundo, quando foi transferido para uma unidade prisional sob responsabilidade da Secretaria de Administração Penitenciária. No presídio da Polícia Civil, havia superlotação que chegava a três vezes a capacidade dos internos. “Foi algo bárbaro, traumático, que me dá arrepios quando essa imagem me vem à cabeça. Uma situação muito caótica”, afirma o líder comunitário.
“Ainda não havia audiência de custódia quando fui preso. Então, fiquei oito meses esperando a sentença, numa prisão. Quando veio a sentença, faltava 14 anos e 8 meses por crime de baixa potencialidade [baixo potencial ofensivo]. Mas, por se tratar de um crime contra o património, em que se prejudicam instituições financeiras, a pena foi aumentada ao máximo”, acrescenta, lembrando que é comparável à pena aplicada a quem comete homicídio, questão discutida entre especialistas em criminalidade. abolicionismo.
Como destaca Oliveira, “a lei está diretamente ligada à proteção do patrimônio”. “Não sou um pesquisador da cadeia, mas sou a pessoa que vivenciou a cadeia e pude observar as diferenças, as discrepâncias nos artigos [do Código Penal]”, ressalta.
Oliveira acabou cumprindo pena de 5 anos e 8 meses e recebeu isenção de pena no final de 2021. Assim, vivenciou como são os regimes fechado e semiaberto e a liberdade condicional. Durante um ano, ele teve um benefício extramuros, onde ia trabalhar durante o dia e voltava à noite para dormir na unidade.
O líder do EuSouEu lembra que viu uma bandeira quando foi transferido para outra unidade, que dizia “Ressocializar para o futuro conquistar”. “Aquela frase foi uma virada para mim, para mim querer entender como funcionam essas engrenagens do encarceramento. Por que ‘ressocializar’, se nem mesmo a socialização foi disponibilizada para uma população vulnerável, que tem histórico de escravidão? ? ele pergunta.
Ainda preso, obteve livros com a ajuda de familiares que o levaram para ler, embora não necessariamente chegassem ao seu destino, pois dependia da boa vontade dos agentes que estavam de plantão. “É muito subjetivo. Existem as resoluções do sistema, mas quem decide o que vai ser incluído ou não é o plantonista daquele dia”, explica.
Oliveira define sua trajetória de crítica ao sistema como uma observação de “todo esse método de reprimir, de fazer esses corpos permanecerem nesse sistema, num ciclo viciante”. “Antes eu via o sistema como algo extremamente necessário, algo que tinha que ser muito brutal, muito punitivo, dentro dessa perspectiva de ordem, de classe social, muito severa, para que houvesse uma recuperação”, reconhece, destacando que também repensado sobre o que os programas de TV sensacionalistas fazem.
Nova Rota
A advogada Katherine Martins, que coordena a Nova Rota há quatro anos, também admite que mudou de opinião, deixando para trás a visão punitiva que tinha quando pisou pela primeira vez numa prisão. De classe média alta, ela entendeu que este é um espaço que perpetua desigualdades que prejudicam, sobretudo, os jovens, os negros e os pobres.
“A educação não é para remissão, para conseguir um emprego. A educação é para você, para se formar, para se capacitar e para modificar a si mesmo e ao que está ao seu redor”, afirma a coordenadora.
A cada semestre, são cerca de 200 candidatos que disputam duas ou três vagas que a Nota Rota oferece para ajudar nos planos de estudos de graduação, o que comprova que há um grande interesse dos formandos em construir uma nova vida. “Existem muitas iniciativas voltadas para a empregabilidade, mas poucas para a educação”, pondera, acrescentando que o modelo estava sendo alterado para melhor atender às demandas, como oferta de alimentação aos participantes, internet, apoio psicológico, mentoria, vale-transporte, vale-alimentação, bolsas de alfabetização, cursos técnicos, cursos complementares.
“Quando você sai, estudar não é o mais importante? Não, comer é o mais importante”, explica.
A graduada Patrícia Rodrigues do Nascimento teve papel essencial ao identificar e conseguir atender às necessidades dos participantes do projeto, quebrando a vergonha e outros sentimentos que impediam o alcance da coordenação. Ela se tornou a pessoa que percebe as pessoas que ficam constrangidas e não quer dizer que estão passando fome em casa ou que têm dificuldade para usar o computador.
“A Patrícia é bolsista. Fez toda a diferença no acompanhamento do projeto que ela aderiu”, afirma Katherine.
Katherine também cita o percurso de outro bolsista, Eder Henrique Dourado, outra “Fernanda Montenegro da prisão” (referência ao filme Brasil Centralem que a atriz interpreta a personagem de uma ex-professora, Dora, que escrevia cartas para analfabetos na Estação Central do Brasil, no Rio), pois, assim como Oliveira, escrevia cartas de colegas de cela que não sabiam ler e escrever. Entrou no projeto durante a pandemia e conseguiu fazer suplementação e depois engenharia de computação. “Ele diz: ‘Meus filhos serão a primeira geração que não foi presa.’
Kaio Nunes, analista de projetos da ONG Ação pela Paz, parceira da Nova Rota, destaca que a maioria dos presos não reincide no crime, algo comprovado estatisticamente e que o discurso que dá ênfase à minoria que retorna a esse contexto deve ser abandonado . Ele cita ainda outras histórias semelhantes à de Cristiano da Silva Oliveira, como a de um graduado que passou quase oito anos em regime fechado e, ao sair, começou a promover e organizar uma organização social, com o apoio da família.
“Sabemos que o mundo lá fora não está preparado, pensando na família, nos amigos, no meio social em que estarão inseridos, e isso também se reflete nas empresas, que acabam replicando essa visão que toda a sociedade tem. , tem um carimbo nas costas de que ele está saindo”, diz ele, que atua na área de saída de pessoas do sistema prisional.
Segundo Nunes, também é importante que as pessoas tenham em mente que têm simetrias com os formados. “Eles também são homens de família, responsáveis pelos seus e que trabalham dentro da unidade para pagar algo pela família”.
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