Antes de fazer a transição e enfrentar o mundo como Camila Sosa Villada, ela já escrevia como mulher.
Criada na província de Córdoba, no interior da Argentina, era a voz feminina da narradora das histórias que escrevia e mantinha escondidas dos pais.
“Foi um ato ousado de emancipação, cheio de vergonha e malícia, como se eu estivesse pregando uma peça. Escrever nos dá coragem e no meu caso foi profético”, disse em entrevista em sua casa, em Córdoba.
Esta voz, anos mais tarde, seria celebrada e reconhecida, ganhando prémios e elogios internacionais. O trabalho de Sosa Villada é quase sempre baseado em suas próprias experiências difíceis como prostituta, atriz e travesti – termo usado na América Latina para descrever uma pessoa que nasce homem, mas desenvolve uma identidade feminina, reivindicando a palavra com a qual nasceu como um insulto. .
Para ela, a linguagem é um ato de resistência. “Não utilizo o termo ‘mulher trans’, nem o vocabulário cirúrgico, frio como um bisturi, porque é uma terminologia que não reflete a nossa experiência como travesti nessas regiões, desde os tempos dos indígenas até os atuais loucura da civilização.
Resgato o apedrejamento, a cuspida, o desprezo”, escreveu ela no prefácio de seu aclamado romance de estreia, “O Parque das Irmãs Magníficas”.
Ela diz que o que procura é uma reação visceral. Sua prosa precisa pode ser ao mesmo tempo terna e contundente, oferecendo doses de alegorias extravagantes combinadas com atos de violência íntima, característica que lhe rendeu um público crescente.
“O Parque das Irmãs Magníficas”, traduzido por Kit Maude e publicado em inglês em 2022, conta a história de uma “caravana de travestis” que se prostituem em um parque de Córdoba; Ganhou prêmios no México, Espanha e França, foi traduzido para 21 idiomas e está sendo adaptado para o cinema, produzido e dirigido pelo ilustre cineasta argentino Armando Bó. As filmagens estão programadas para começar em 2025.
O próximo livro, “Thesis on a Domestication”, que deverá ser publicado em inglês pela Riverhead Books no início de 2026, conta a história de uma atriz que era prostituta de uma agência que oferecia “o melhor catálogo de travestis” e se casou com um homem gay, com quem adota uma criança.
Já foi adaptado para o cinema e tem lançamento previsto para este ano, estrelado pela própria Sosa Villada e produzido por Gael García Bernal e pela companhia de Diego Luna, La Corriente del Golfo. Seu trabalho mais recente disponível em inglês é a coleção “Sou uma tola por te quer”, traduzida por Kit Maude e publicada em maio pela Other Press.
Nascida em 1982, na região oeste da província de Córdoba, Sosa Villada conta que sua infância foi marcada pelo terreno árido e acidentado que muitas vezes lhe parecia ameaçador. Ela teve que se mudar várias vezes com os pais em busca de emprego.
“Normalmente morávamos em casas antigas sem eletricidade, encanamento ou água potável. Mas os pores do sol eram intermináveis.”
Quando ele tinha cerca de dez anos, a família se estabeleceu em Mina Clavero, uma pequena cidade de 18 mil habitantes situada em um vale, e construiu sua própria casa. As altas montanhas que a rodeavam criavam a percepção de uma muralha intransponível e Sosa Villada sonhava com o dia em que a superaria. “Lembro-me de pensar que deveria haver algo além deles.
Esse desejo foi crescendo e se fortalecendo à medida que eu fazia minha transição, aos 13, 14 anos. Recebi insultos, cuspiram em mim, tive que correr para casa porque atiraram pedras em mim. No início, meus pais também me desprezaram; Meu pai disse que eu acabaria morto em uma vala, mas estamos de volta aos bons tempos.”
Aos 18 anos, Sosa Villada acabou se mudando para a cidade de Córdoba, para estudar comunicação e teatro. Para pagar as contas, ela começou a se prostituir e muitas vezes se viu em situações difíceis. “Uma vez o cliente quase me estrangulou e até roubou o pouco que eu tinha.”
Esta experiência é descrita no que ele considera ser a história mais autobiográfica que já escreveu. Nele, os pais da menina vão à igreja pedir à filha que procure outro tipo de emprego. Mais tarde, a jovem estreia em uma peça e se torna sucesso absoluto.
“O enredo é baseado na minha própria experiência: três meses depois que meus pais foram para o santuário, comecei a atuar em uma peça que ajudei a escrever, baseada na minha vida. Foi esse sucesso que ajudou a lançar minha carreira”.
“Graças à minha identidade e ao meu trabalho, sempre tive a sensação de ser uma espiã, com acesso aos mundos e facetas que as pessoas normalmente mantêm escondidas. Tive um cliente que sempre me pedia para fingir que era sua filha; Eu o vi andando pela cidade novamente, ao lado da esposa e dos filhos. Esse tipo de situação é o que me inspira, não sei se é bom ser invisível na vida real, mas no que diz respeito à linguagem, à literatura e à fala. é um privilégio, porque você pode ver uma certa condição que as pessoas não tentam esconder.”
Segundo Paola Lucantis, editora argentina que publicou dois livros da autora, o estilo de Sosa Villada revela as feridas da humanidade, da sociabilidade, da sexualidade, do amor e da solidão, que ela consegue universalizar através da sua própria experiência. “O olhar de Camila sempre vai um pouco além do nosso, meros mortais.”
Sandra Pareja, agente da autora, conheceu seus escritos por meio de amigos e confessa ter se emocionado com o talento artístico que ali viu. “Apesar do sucesso, é realmente um desafio não permitir que Camila seja estereotipada e garantir que a complexidade do seu trabalho seja respeitada.
O espaço literário internacional é um pote muito fechado, só há abertura para uma escritora de língua espanhola por vez, e olha, mas ela já quebrou várias barreiras nesse aspecto”, explicou, referindo-se à turnê por quatro países europeus para promover a “Tese sobre domesticação”, que escreveram juntos.
Ele acrescentou: “A humanidade e a compaixão que sua literatura transmite dão espaço para que tanto as pessoas de sua comunidade quanto as de fora dela se identifiquem umas com as outras.
Acho que ela consegue fazer com que o público sinta algo novo, tenha um nível de empatia como nunca demonstrou antes. A experiência de interpretar a si mesma como protagonista do filme baseado em sua obra, ‘Tese sobre uma Domesticação’, abriu-lhe um novo mundo.
É uma história que serve de alerta sobre o que pode acontecer se uma pessoa se perder para o sucesso, tornando-se algo que não se cansa de devorar tudo ao seu redor. Ela gosta do processo de escrita e diz que foi graças aos editores que sua prosa teve a oportunidade de brilhar; ela brinca que é melhor ter um editor do que um namorado.
Mas a verdade é que ela nunca esteve particularmente interessada em ver os seus livros publicados; garante que o que ela fez e está fazendo é para si mesma e para mais ninguém.”
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