A Comissão Interamericana de Direitos Humanos, ligada à Organização dos Estados Americanos (OEA), ouve nesta sexta-feira (12) vítimas de diversas tragédias ocorridas nos últimos anos no Brasil e que não resultaram em qualquer responsabilidade criminal. Eles prestarão depoimento em audiência que discutirá se o Estado brasileiro, considerando a falta de resposta judicial, está envolvido em violações de direitos humanos causadas por atividades comerciais.
Os depoimentos terão início às 15h e serão transmitidos no canal da comissão no Plataforma Youtube. A audiência terá duração total de uma hora e meia, e representantes do Estado brasileiro também poderão falar.
Entre os participantes, falarão vítimas das duas grandes tragédias mineiras que geraram comoção no país. Em 2015, uma barragem da mineradora Samarco, localizada na zona rural de Mariana (MG), rompeu, causando 19 mortes e gerando impactos socioambientais em dezenas de municípios mineiros e capixabas do Rio Doce. Bacia. A maioria dos acusados obteve decisões favoráveis que retiraram sua condição de réu e os poucos que ainda aparecem no processo criminal após oito anos não são mais responsáveis por homicídio.
Outra barragem rompeu em 2019 na cidade de Brumadinho (MG), causando a perda de 272 vidas. Considerando que a maior parte das vítimas trabalhava na mina onde ocorreu o desabamento, o episódio tornou-se o maior acidente industrial do país. A estrutura pertencia à Vale, mineradora que também esteve envolvida na tragédia de 2015. É um dos dois acionistas da Samarco, ao lado da anglo-australiana BHP Billiton. As famílias das pessoas afectadas têm protestado contra a habeas corpus concedida recentemente ao ex-presidente da Vale, Fábio Schvartsman, que o libertou de processo criminal.
Também falarão vítimas do afundamento de cinco bairros de Maceió, devido à exploração de minas de sal-gema pela petroquímica Braskem. Embora, neste caso, não tenha havido mortes, estima-se que cerca de 60 mil moradores tiveram que se mudar da área e deixar suas propriedades. As vítimas alegam que há casos de pessoas que posteriormente cometeram suicídio devido à perda das suas condições de vida.
O incêndio na boate Kiss, que deixou 242 mortos e mais de 600 feridos em Santa Maria (RS) em 2013, também está na pauta da audiência. Quatro pessoas foram condenadas a 18 anos de prisão em um tribunal com júri. Contudo, a decisão foi posteriormente anulada, na sequência de pedidos dos advogados dos arguidos, que apontaram nulidades no processo. Atualmente, o Supremo Tribunal Federal (STF) avalia recurso do Ministério Público Federal (MPF), que pede o restabelecimento das penas.
Paulo Carvalho, que perdeu o filho Rafael Carvalho na tragédia da Boate Kiss, é um dos que participará da audiência. Atualmente é diretor jurídico da Associação de Familiares de Vítimas e Sobreviventes da Tragédia de Santa Maria (AVTSM).
“Com o tempo, começamos a perceber que o mesmo acontecia com as tragédias que se seguiram à Boate Kiss. Seguiam pelo mesmo caminho: a impunidade, a falta de resposta do Estado brasileiro, o desprezo pelas vítimas, o aumento das violações por meio de ações judiciais contra os pais Há ações movidas contra os atingidos em Maceió, Mariana e Brumadinho. É muito claro que há intimidações de empresas, proprietários e do próprio Estado brasileiro que inibem os familiares na busca por justiça”, disse. .
Segundo Paulo Carvalho, as vítimas dos diversos episódios começaram a se reunir em janeiro deste ano, durante atividades em Brumadinho (MG) que marcaram os cinco anos do rompimento da barragem da mineradora Vale. Juntos, teriam notado a repetição dos mesmos procedimentos judiciais.
“Em casos de grande impacto, a resposta do Estado deve ser muito mais ágil. Ao contrário do que está acontecendo. Eles são muito lentos, aceitam manobras imorais da defesa dos réus. Somos a favor do devido processo legal, independentemente de serem ou não são culpados ou inocentes Mas o que acontece é que o devido processo não é seguido. Eles são trancados, arquivados, bloqueados por questões processuais irrelevantes, são concedidos. habeas corpus indistintamente. A verdade não pode ser conhecida. E a principal estratégia é buscar receita médica. No caso de Boate Kiss, são 11 anos. Isso é o que todo mundo sabe. Tudo que você precisa é de poder e dinheiro.”
Na audiência também será discutido o incêndio nas instalações do Ninho do Urubu, centro de treinamento do Flamengo. No episódio, ocorrido em fevereiro de 2019, morreram dez meninos entre 14 e 16 anos, que integravam as categorias de base do clube. Até o momento, não houve responsabilidade criminal. O advogado Louis de Casteja, que representa a família de Christian Esmério, vê culpa do clube e do Poder Público.
“A partir do momento que o Flamengo tem um centro de treinamento fechado, sem licença e sem autorização para receber crianças, já está completamente errado. E é claro que há responsabilidade por parte do município do Rio de Janeiro, e talvez do Estado Eles foram totalmente coniventes e negligentes Sabiam que não havia autorização, sabiam que havia proibição e aplicaram multas ridículas e num país grave teriam sido denunciados por omissão”, afirma.
A família de Christian Esmério foi a única que não fechou acordo com o Flamengo, por discordar dos valores oferecidos. Ele entrou com uma ação e já obteve sentença estabelecendo indenização por danos morais aos pais e irmãos do adolescente, além de pensão mensal até a vítima completar 45 anos. Os recursos foram apresentados tanto pelo Flamengo, que contesta a responsabilidade, quanto pela defesa da família, que busca o aumento dos valores. “O clube tentou aproveitar a pandemia para poder estrangular financeiramente as famílias e fazer com que acabassem por estabelecer um acordo”, critica Louis de Casteja.
Todos esses episódios juntos custaram mais de 500 vidas, além de causarem muitas consequências físicas e sofrimento emocional às vítimas. “Apesar de serem tragédias de natureza tão distintas, elas têm em comum a irresponsabilidade movida pela ganância e pela impunidade”, diz nota da Associação das Famílias das Vítimas e Atingidos pelo Rompimento da Barragem de Brumadinho (Avabrum).
Segundo a entidade, a expectativa é que a comissão cobre o Estado brasileiro para “tornar efetiva a fiscalização das atividades empresariais e comerciais no país a fim de evitar novas tragédias” e cumprir “seu dever de processar e punir os responsáveis, para que as violações dos direitos humanos não se repetem.” Paulo Carvalho destaca que as tragédias foram precedidas pelo incumprimento das normas de segurança. Ele espera que o Brasil mude sua postura para penalizar exemplarmente as empresas que desafiam ou negligenciam as determinações do fisco.
“Precisamos reconhecer as falhas. Caso contrário, outra tragédia é uma questão de tempo. Não sabemos quando, mas ocorrerá se esta situação continuar. Argentina, Estados Unidos, Roménia, Rússia, Coreia do Sul e França tiveram tragédias semelhantes e fizeram uma responsabilização muito ágil e o resultado foi a prevenção de outras tragédias Qual a justificativa para um país que demora 11 anos e não consegue responsabilizar ninguém?”, questionou. Ele cita o caso do incêndio na boate Lame Horse, que deixou 156 mortos na Rússia em dezembro de 2010. Em abril de 2013, oito pessoas foram condenadas.
* Fabiana Sampaio – Repórter da Rádio Nacional do Rio de Janeiro contribuiu
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