Uma pesquisa do Instituto Fogo Cruzado, organização sem fins lucrativos que produz dados sobre violência armada, analisou 72 anos de discursos de parlamentares do Congresso Nacional sobre armas civis e constatou que, a partir de 2015, o número total de declarações pró-armas excede aqueles que apoiam o controlo de armas. Foi a primeira vez desde o primeiro discurso sobre armar cidadãos, em 1951, que houve uma inversão de posição sobre a questão – com mais parlamentares a falarem a favor de tornar as armas mais flexíveis.
Entre 2015 e 2023, houve 376 discursos no palanque a favor de maior acesso a armas para a população, ante 157 contra. Só no ano passado, o número de discursos do campo armamentista excedeu os do campo pró-controlo em mais de três vezes.
A incidência dos debates sobre armas aumentou drasticamente na 52ª legislatura da Câmara, entre 2003 e 2007, impulsionada pelo debate sobre o Estatuto do Desarmamento. O discurso contra os armamentos era a principal tendência da época. Segundo a pesquisa, o predomínio de declarações a favor do armamento da população começou apenas na 55ª legislatura, marcada por uma renovação inédita de parlamentares no Congresso.
Alguns marcos da “virada conservadora” são a chegada de deputados como Eduardo Bolsonaro (PL-SP), que foi eleito para o cargo pela primeira vez e quebrou a marca histórica de ter mais votos no país e mais eleição significativa de Jair Bolsonaro (PL), que estava para seu sétimo mandato nas eleições de 2014, eleito o deputado mais votado do Rio de Janeiro, na época pelo PP, com 464.572 votos. A família tem as armas civis como uma de suas principais bandeiras como forma de “defesa” e é até conhecida pelo símbolo da “arma” feito com a mão. Entre os eleitos naquele ano, 198 tomaram posse pela primeira vez e 25 retornaram à Câmara após período sem mandato.
Com Bolsonaro à frente da Presidência da República, o número de armas em mãos de civis disparou e o controle diminuiu. Houve decretos do Executivo, três portarias do Exército sobre monitoramento de armas e múltiplos projetos para facilitar o acesso a revólveres, fuzis e munições, utilizando para isso CACs (Caçadores, Atiradores e Coletores).
Ó Estadão revelou em março deste ano que 5.235 pessoas cumprindo pena registraram armas no Exército, incluindo condenados por homicídio, tráfico de drogas e estupro entre 2019 e 2022. Ainda durante o governo Bolsonaro, 94 pessoas declaradas mortas compraram quase 17 mil munições para armas de fogo em acervos do CAC .
O estudo do Instituto mostra que, mesmo com a mudança de rumo do Executivo sobre o tema, após a posse de Luiz Inácio Lula da Silva em 2023 e a revogação de decretos assinados por Bolsonaro, a agenda a favor de armar a população continuou em destaque entre os parlamentares. O que aconteceu, no entanto, não foi um aumento nos discursos pró-armas, que não excedeu os níveis observados quando a questão começou a repercutir no Congresso, de 2003 a 2007, mas sim uma queda nos discursos pró-controlo.
Uma das hipóteses que a pesquisa sugere sobre a falta de reação dos parlamentares adversários é que isso ocorre porque este campo acredita que a questão foi pacificada. “Essa é uma crença de amplos setores da sociedade, que se baseia na aprovação do Estatuto do Desarmamento lá atrás e na velha ideia de que a maioria dos brasileiros é contra as armas. Acontece que na história recente percebemos que isso é não é bem assim”, comenta Terine Coelho, coordenadora de pesquisa do Fogo Cruzado.
Para ela, o grupo que fala contra as armas também parece ter a impressão de que a revogação dos decretos por Lula resolveria a questão. “Os parlamentares pró-armamento não se desmobilizaram e nem vão, porque essa questão é central na organização desse grupo, que vem se renovando com parlamentares mais jovens e que hoje tem uma bandeira muito consolidada, que é a derrubada da revogação dos decretos”, diz. Terine afirma que, considerando a atual formação do Congresso Nacional, não há indícios de que esse tema não volte ao centro do debate em algum momento desta legislatura. “Precisamos ficar alertas”, alerta ela.
Os principais argumentos utilizados nos discursos são o medo da violência, as políticas de segurança pública, o suposto direito dos “cidadãos de bem” de se defenderem dos criminosos, os limites dos poderes Executivo e Legislativo sobre o tema e o impacto que as armas podem ter sobre diferentes grupos da população – como crianças, mulheres vítimas de violência doméstica, negros, estudantes, entre outros.
Atualmente, 61 projetos de lei que incluem o termo “armas civis” tramitam na Câmara e 12 no Senado, segundo dados das próprias Casas. A atual legislatura, que vai até 2027, mas já acumula 75 discursos de armas ante 24 de parlamentares adversários, é marcada pela criação do movimento Proarmas, liderado pelo deputado Marcos Pollon (PL-MS), o deputado mais votado em Mato Grosso do Sul. Ele também foi o campeão de discursos nesse campo, com 14, seguido por Eduardo Bolsonaro, com 7; Alberto Fraga (PL-DF), com 5; Coronel Fernanda (PL-MT), com 4; e Cabo Gilberto Silva (PL-RS), com 3 discursos. No total, 30 parlamentares usaram a plataforma para defender armas no ano passado.
Em 2022, o Proarmas, maior associação armamentista do país, foi responsável por apoiar e conseguir eleger 23 deputados no Congresso, 16 deputados e sete senadores que, juntos, receberam 18,6 milhões de votos. O PL foi o partido que fez o maior número de CACs no grupo eleito, com 17 parlamentares.
As declarações de Bolsonaro como deputado
A pesquisadora Deysi Cioccari, que estudou os 1.500 discursos de Jair Bolsonaro como deputado federal, entre 1991 e 2018, em sua pesquisa de pós-doutorado em Comunicação na Faculdade Cásper Líbero, lembra que ganhou destaque midiático pela primeira vez ao discutir com a deputada Maria do Rosário (PT-RS), em 2014, no fatídico episódio em que disse que a deputada “não merecia” ser estuprada. A investigadora afirma que foi a primeira vez que alguém que falou em violação foi chamado de “mito” e que os conservadores na legislatura de 2015 foram eleitos em conformidade. “Bolsonaro deu-lhes a voz que precisavam para se organizarem e saírem das ‘sombras’.” Ela é a autora do livro Jair: 1991-2022.
Durante seus anos na Casa Legislativa, o então deputado utilizou a plataforma para fazer declarações que, 90% das vezes, eram relacionadas aos militares, afirma o pesquisador. “Seus discursos sempre foram muito mais focados nas armas do que em qualquer outra ala conservadora”, compara.
Segundo o estudo, um dos principais slogans desta ala é a tese de que “criminoso bom é criminoso morto”. O sentimento de insegurança, as crises de segurança pública e os discursos televisivos que aumentam essa percepção entre os cidadãos formam um contexto favorável para figuras como esta e para o tema das armas como “defesa pessoal”. “Para a extrema direita, o criminoso é sempre o outro, que precisa ser combatido”, afirma a pesquisadora, que defende que a utilização do medo como agente mobilizador e unificador é uma estratégia política antiga.
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