Em meio às críticas relacionadas à falta de transparência, o Judiciário carece de dados completos sobre a composição racial do mundo forense, segundo estudo da Fundação Getúlio Vargas (FGV). O Data Jud, banco de dados nacional do Poder Judiciário, aponta que de um total de 18.324 magistrados no país, 2.202 se declaram negros, sendo 1.954 pardos e 248 pretos. O mapeamento não inclui dados de 2.273 magistrados, segundo o Sistema MPM (Módulo de Produtividade Mensal).
A pesquisa “Operacionalizando a equidade racial no Poder Judiciário: uma análise da implementação da Resolução 203/2015 do Conselho Nacional de Justiça (CNJ)”, da FGV Direito, mostra como a falta de dados sobre o perfil étnico-racial dos magistrados pode influenciar o desenvolvimento de políticas públicas.
A Resolução 203/2015 prevê um patamar mínimo de 20% de pessoas negras em cargos judiciais. Porém, segundo o estudo, a falta de dados dificulta a análise do impacto das cotas em concursos públicos e também a reformulação dos percentuais de reserva de vagas.
“A sub-representação é latente. O problema é que as pessoas não param para pensar nisso. A falta de dados confiáveis, não por causa do CNJ, mas por causa dos tribunais que não produzem esses dados, é uma loucura, considerando que se É uma das instituições mais caras e deveria ter maior transparência em termos de pessoal”, aponta a professora e coordenadora de pesquisa da FGV Direito Luciana Ramos.
A secretária-geral do Conselho Nacional de Justiça, Adriana Alves, destaca que a questão racial entrou na agenda do Judiciário após a coleta de dados. “Em 2013, quando houve a primeira pesquisa, os números traduziram de forma estatística científica o que nossos olhos indicavam, que eram pouquíssimos negros. Tanto que se você olhar mesmo a quantidade de negros, estamos incluindo uma grande contingente de pardos, e os negros são apenas 249.”
O desembargador presidente do Tribunal Regional do Trabalho da 23ª Região (MT), Adenir Carruesco, entende que os números mostram como a comunidade jurídica como um todo não se preocupa nem percebe a questão racial.
“Sou o único juiz negro no tribunal desde o concurso público. Sou juiz há 30 anos e até hoje nenhum outro juiz negro foi aprovado em concursos. percentual de pretos e pardos, por que isso não se reflete no conjunto das instituições, nos espaços de poder e de decisão?”, questiona o juiz.
O Censo do IBGE de 2022 mostrou que o Brasil tem 55,5% da população autodeclarada negra. No Judiciário, 13,7% se declaram negros. O percentual é calculado com base nos dados disponíveis, ou seja, a partir de 16.052 juízes.
A quantidade de negros no Judiciário está relacionada aos mecanismos de seleção, ao concurso público, e, portanto, ‘tem pressuposto meritocrático’, destaca Luciana Ramos.
Ela observa que a construção estrutural da sociedade brasileira é permeada por ideais racistas que afastam determinados grupos do poder. “Então, temos um cenário muito drástico que evidencia essa sub-representação do povo negro no Judiciário, principalmente no Judiciário”, explica.
A pesquisa da FGV realizou 26 entrevistas em 13 tribunais questionando percepções sobre a política de cotas e a avaliação da equidade racial no Judiciário. Para os entrevistados, a política de cotas para negros aumentou a presença desse grupo. Porém, quando questionados sobre a posição dessas pessoas – magistrados ou servidores – a maioria percebeu um aumento entre os servidores.
“As pessoas poderiam indicar um ou dois juízes negros”, observa a professora. Dos 280.840 servidores do Judiciário, 58.965 são autodeclarados pardos e 10.542 negros. O total não declarado é 27.335.
Pesquisadores da FGV Direito indicam que os obstáculos de acesso às informações sobre composição racial gerados pela não produção de dados dos tribunais dificultam o acompanhamento do CNJ sobre o ingresso, a permanência e a promoção nas carreiras que compõem o mundo forense.
“Passamos toda a pesquisa tentando resolver essa falta de dados […] Este é um problema enorme. Quando você não tem informação não consegue nem avaliar políticas públicas”, reclama Luciana Ramos.
O Conselho Nacional de Justiça garante que atua constantemente para que a falta de informação seja sanada. Em 2023, a instituição realizou uma campanha para recadastramento de dados étnico-raciais no Poder Judiciário.
A ação faz parte do Pacto Judiciário Nacional pela Equidade Racial, que contou com a adesão de todos os tribunais. Além disso, o Conselho desenvolveu os Prêmios de Qualidade do CNJ para tribunais com maior nível de preenchimento e qualidade de informação.
Segundo a secretária-geral do CNJ, Adriana Alves, as ações buscam não apenas preencher os dados, mas também qualificá-los por meio desse incentivo. Ela diz que não há previsão obrigatória para a declaração.
“Uma determinação obrigatória, neste caso específico, pode até fazer com que a pessoa produza um resultado, mas talvez não o resultado esperado, porque não queremos resposta nenhuma, queremos uma resposta de qualidade, então queremos através do trabalho de convencimento tribunal, para o magistrado entender que aquela informação é importante”, explica Adriana.
Processo de desracialização
A FGV mostra também que há um processo de desracialização nos mecanismos de ingresso no Judiciário por meio de concursos públicos. Isso acontece porque a política de cotas está prevista para acontecer na primeira etapa. Assim, quando o candidato se declara negro no momento da inscrição, mas passa na nota de corte, ele entra em ampla concorrência.
“A desracialização acontece quando você junta todo mundo, aí eu perco esse marcador racial, que é importante para eu ver quantos negros entraram”, explica Luciana Ramos. De acordo com o artigo 3º da Lei 12.990 de 2014, que regulamenta a política de cotas em concursos públicos, “os candidatos negros aprovados dentro do número de vagas ofertadas para amplo concurso não serão contabilizados para efeito de preenchimento de vagas reservadas”. Assim, segundo o estudo da FGV, perde-se o rastreamento dos candidatos que ingressaram na ampla concorrência.
Para o juiz Adenir Carruesco, apesar dos esforços, a questão das cotas não atingiu o objetivo. “Essa aplicação de cotas tem que estar muito disponível para que você possa entender quantas pessoas entraram na cota (…) tem que esclarecer isso, publicar dados detalhados sobre a composição racial, caso contrário essa avaliação será difícil”.
Ampliação de cotas raciais em concursos públicos
A Lei 12.990, de 2014, que determina a reserva de 20% das vagas oferecidas em concursos públicos para pessoas negras, encerrou no dia 10 de junho por dez anos. Com isso, o PSOL e a Rede Sustentabilidade entraram com uma ação no Supremo Tribunal Federal pedindo a manutenção da legislação.
Os partidos sustentam que a política pública não alcançou o efeito de inclusão social e criticam o limite estabelecido pela legislação que restringe a política de cotas apenas às competições que oferecem três ou mais vagas.
O relator da ação no STF, ministro Flávio Dino, reconheceu que a lei não atingiu seus objetivos e, portanto, deveria permanecer em vigor.
No entanto, o ministro destacou a necessidade, colocada pela própria legislação, de avaliar os efeitos das políticas públicas para definir se há ou não necessidade de continuidade.
“Essas cotas continuarão a ser observadas até que seja concluído o processo legislativo de competência do Congresso Nacional e, posteriormente, do Poder Executivo. Alcançada esta conclusão, prevalecerá a nova deliberação do Poder Legislativo, e o conteúdo da essa decisão cautelar será reavaliada”, determinou o ministro.
No final de maio, o Senado aprovou o PL 1.958/2021, que aumenta para 30% a reserva de vagas em concursos públicos para negros, pardos, indígenas e quilombolas. A proposta apresentada originalmente pelo senador Paulo Paim (PT-RS) foi encaminhada à Câmara e aguarda despacho do presidente Arthur Lira (PP-AI).
“O Senado já aprovou todas as matérias que colocamos em pauta sobre o tema combate ao racismo e ao preconceito. Lamentamos que a Câmara não tenha entendido a importância desse assunto. Isso demonstra que as questões sociais e raciais não são prioridade”, afirma o senador. Para Paim, a renovação das políticas públicas é fundamental para fortalecer a democracia do país.
Arthur Lira disse que o projeto deverá ser discutido na próxima semana em reunião do colégio de dirigentes. Em nota, o deputado informou que “ouvirá lideranças partidárias para definir a tramitação do PL, quando a bancada preta deverá fazer requerimento ao colegiado para sua tramitação”.
COM A PALAVRA, ARTHUR LIRA
Por meio de sua assessoria, o presidente da Câmara informou que o PL 1.958 deverá ser discutido na próxima reunião do colégio de dirigentes, marcada para a próxima semana.
“O presidente Arthur Lira ouvirá lideranças partidárias para definir a tramitação do projeto de lei, quando a bancada negra deverá fazer requerimento ao colegiado para sua tramitação”.
Ainda segundo a assessoria de imprensa, ‘durante sua gestão, o presidente Arthur Lira publicou a resolução 116/23, que cria a bancada negra na Câmara dos Deputados, iniciativa pioneira no parlamento brasileiro’.
E destaca o PL 5384/20, transformado na lei 14.723/23, que trata da Lei de Cotas de Ingresso nas Universidades, de caráter permanente, com a adoção de sistema de cotas raciais. “Dispõe sobre o programa especial de acesso às instituições federais de ensino superior e de ensino médio técnico para estudantes pretos, pardos, indígenas e quilombolas e pessoas com deficiência, bem como para aqueles que tenham concluído o ensino médio ou fundamental em escola pública.”
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